Uma visão conciliatória da crise europeia

É absolutamente necessário que os políticos expliquem às respetivas populações os benefícios individuais de participar no euro. A Holanda tem de perceber que, enquanto quasi-paraíso fiscal, está a retirar recursos financeiros aos seus vizinhos, e a Alemanha tem de aceitar que os seus excedentes externos são assegurados por uma moeda desvalorizada.

Durante a última semana assistimos a uma discussão que a cada dia se tornava mais confusa. De repente deparei-me com uma narrativa que apresentava os eurobonds como a única solução possível para esta crise económica, e a sua não-implementação como o fim do projeto europeu (recentemente sugerido por António Costa). Neste texto, tento separar as várias ideias que se misturaram e, se possível, oferecer uma visão mais conciliatória da crise europeia que emergiu com a tentativa de uma resposta financeira concertada à pandemia covid-19. Mal interpretado, este momento crítico conduzirá a leituras politicamente tóxicas e criará cicatrizes potencialmente insanáveis. Vamos por partes.

1. Os países da zona euro não estão a viver uma crise de liquidez

Ao contrário do verificado na crise da dívida soberana, as economias periféricas como Itália, Espanha e Portugal têm pleno acesso aos mercados financeiros. E em condições muito favoráveis. Para isto, foi essencial a decisão do Banco Central Europeu (BCE) de lançar um programa de emergência para a pandemia, no qual se oferece para comprar €750 mil milhões de ativos (6,3% do PIB da zona euro!). O BCE também decidiu, neste programa, não olhar aos limites políticos que antes guiavam as suas compras. Quem acompanha a política monetária europeia sabe o quão revolucionário isto é. Juntamente com a decisão da Comissão de suspender as regras orçamentais, a mensagem da Europa é clara: gastem o que for preciso. 

2. Mas muitas economias enfrentam o risco de insolvência

É certo que o aumento dos gastos, acompanhado por um colapso da receita, vai fazer disparar os níveis de dívida pública, o que será problemático para economias com rácios de dívida acima dos 100% do PIB, uma vez que pode tornar o seu endividamento insustentável. Com razão, os líderes políticos dos países do Sul estão preocupados com as consequências futuras das decisões hoje tomadas. Temem um pós-crise acompanhado de uma necessidade latente de consolidação orçamental. A memória das políticas de austeridade de 2010-2012 está ainda bem viva, o que torna este caminho difícil — política e economicamente.

Uma vez estabelecido o problema — os níveis de dívida, não a capacidade de financiamento —, é importante analisar qual o benefício que os eurobonds ou uma nova linha de crédito sob o Mecanismo Europeu de Estabilidade trariam. E como em todas as discussões, os detalhes importam.

3. Os eurobonds, na sua conceção tradicional, não são solução para esta crise

A ideia de mutualização de dívida não é nova. Volta a surgir porque certos grupos veem esta crise como uma boa oportunidade para promoverem as suas agendas — neste caso, um aprofundamento da integração europeia. Na sua versão clássica, os eurobonds representam uma emissão conjunta de dívida, cujo rendimento é distribuído uniformemente pelos países signatários.

No entanto, um instrumento desta natureza não vai evitar o aumento da dívida de economias que se encontram em situações orçamentais menos sustentáveis, uma vez que a participação no eurobond se refletiria à mesma no balanço dos governos individuais. Com duas agravantes: esta classe de dívida, ao ser mais sénior, implicitamente pioraria a perceção de risco da restante dívida nacional; e, em última análise, poria a Itália e Espanha a pagar parte dos gastos alemães. Com isto, não quero dizer que os eurobonds sejam, em si, uma má ideia. Mas são pouco úteis como solução para esta crise, já para não falar de que um passo tão grande em direção a uma união fiscal europeia exigiria uma harmonia social e política de que atualmente não dispomos.

4. Que resposta Europeia é então possível?

Uma solução que se tem salientado no debate público, apoiada por vários políticos europeus, é a criação dos famosos coronabonds, i.e., uma emissão única e extraordinária de dívida europeia para gastos específicos com esta crise. No entanto, de modo a proporcionar alívio orçamental, o rendimento deste ativo teria de funcionar como uma transferência de dinheiro para os países em maiores dificuldades (e não como crédito). Contudo, esta ideia acarreta outras dificuldades. Como escolher os países que vão beneficiar destes fundos extra? Uma hipótese seria canalizar o dinheiro para as economias que sairão mais prejudicadas em termos de crescimento (proposto pelo economista Martin Sandbu). Mas esta avaliação só pode ser feita ex-post e nada nos garante hoje que a recessão em Itália ou em Espanha seja pior do que na Alemanha ou na Holanda. Outra hipótese seria transferir o dinheiro para economias com posições orçamentais mais fragilizadas — aqui, sim, as da periferia. Esta versão seria um exemplo máximo de solidariedade europeia: países com margem orçamental a estender a mão aos mais endividados.

Foto
REUTERS/Francois Walschaerts

5. Solidariedade europeia: o outro lado da moeda

Num cenário em que pedimos que as economias do norte partilhem o custo de fundos dos quais só beneficiam as do sul, estamos efetivamente a pedir aos cidadãos holandeses e alemães que suportem uma carga fiscal adicional durante os próximos anos (em cima da que já vão suportar para assegurar a sua própria economia). Numa interpretação pessoal do projeto europeu, não me parece catastrófico. No entanto, percebo que seja uma ideia difícil de vender politicamente para Mark Rutte e Angela Merkel. Percebo que, depois de um aumento da carga fiscal e esforços significativos de consolidação orçamental ao longo dos últimos anos nesses países [1], não haja vontade de financiar economias que optaram por não fazer o mesmo (Portugal surge aqui como a infeliz exceção). Percebo que a ideia de eliminar a dívida italiana não seja atrativa quando o sistema político italiano parece não funcionar há anos. 

Ao escolher perceber a posição do Norte, estou automaticamente a aceitar os limites —não o fim — do projeto Europeu e a falta de espaço que há, neste momento, para uma maior integração. Esta não é uma posição menos pró-europeísta. Acredito que este espaço pode ser construído a longo prazo. Mas, para lá chegarmos, é absolutamente necessário que os políticos expliquem às respetivas populações os benefícios individuais de participar no euro. A Holanda tem de perceber que, enquanto quasi-paraíso fiscal, está a retirar recursos financeiros aos seus vizinhos, e a Alemanha tem de aceitar que os seus excedentes externos são assegurados por uma moeda desvalorizada. Como relembrou o economista Miguel Otero, são mudanças políticas que levam tempo e que, se não se consolidaram na última década, é improvável que se concretizem agora.

6. Bem-haja ao BCE, hoje e sempre

Ainda assim, a falta de solidariedade orçamental não representa a inexistência de solidariedade europeia. Temos assistido a esforços coletivos ao nível da saúde. Mais respostas intergovernamentais são possíveis se a UE avançar para uma espécie de Plano Marshall, ambicioso o suficiente para assegurar uma rápida recuperação assim que a economia volte ao normal.

E, mais que tudo, temos o BCE, que efetivamente foi capaz de dar uma resposta conjunta. Ao usar dinheiro comunitário para comprar ativos em larga escala, prova, uma vez mais, que a política monetária não se encontra esgotada, está apenas em território não-convencional. E ainda tem espaço para ir mais longe. Esta configuração, que coloca o banco central como maior responsável pela estabilização económica — que se tem vindo a desenvolver ao longo dos últimos anos —, acarreta, em si, alguns riscos. Primeiro, representa uma espécie de vitória da tecnocracia sobre a política, o que pode trazer complicações se, no futuro, se quiser fazer um ajuste de contas sobre as decisões tomadas. Segundo, não pode ser tomada como certa. Basta uma mudança na vontade política dos que governam o BCE para lançar a zona euro numa crise económica mais aguda. Não acredito que tal aconteça. Com os três maiores bancos centrais mundiais a implementarem programas de compras de ativos infinitos, o financiamento monetário de dívidas parece ter vindo para ficar.

[1] Entre 2013 e 2018, a Holanda e a Alemanha diminuíram em 15 pontos percentuais a sua dívida em percentagem do PIB, enquanto Itália, Espanha e França a aumentaram.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico​

Sugerir correcção
Ler 2 comentários