Oposição contesta despejo na Ribeira: não é lei, é opção política
Executivo de Rui Moreira despejou mãe com dois filhos menores alegando cumprir legislação e o regulamento de habitação social. Mas nem um nem outro o obrigavam a isso. PS, CDU e BE criticam “opção política” e falam de “insensibilidade social”
Quando, na noite de segunda-feira, a Câmara do Porto publicou no seu portal um comunicado sobre o despejo de Joana Pacheco e dos seus dois filhos menores, executado na passada sexta-feira, já um grupo de cidadãos – que terá chegado a pelo menos uma centena – contestava em alta voz, nas traseiras do edifício da autarquia, a política de habitação de Rui Moreira. Estavam ali pela moradora da Ribeira e por outros que têm sido expulsos das suas casas, sobretudo no centro histórico onde a pressão de investidores endinheirados é mais feroz. O executivo alegava que “se decidisse atribuir discricionariamente um contrato de arrendamento” à moradora estaria a passar “por cima da lei e do regulamento municipal”, prejudicando outras famílias e levando o vereador da habitação a cometer um “crime de prevaricação” que podia conduzir a uma “perda de mandato”. E é mesmo assim? PS, CDU e BE dizem que não. “Não é uma opção legislativa, é uma opção política.”
A frase é da vereadora da CDU, Ilda Figueiredo, mas resume também o pensamento de socialistas e bloquistas. Manuel Pizarro assumiu a pasta da habitação no primeiro mandato de Rui Moreira e não tem dúvidas quanto à possibilidade de um desfecho diferente – e sem atropelos à lei nem regulamento. “Se o vereador tomar a decisão baseado em factos e naquilo que o regulamento prevê, nomeadamente, neste caso, a necessidade que o pai tinha da presença da filha para lhe prestar cuidados, não haveria nenhum problema em ter aceitado a reinscrição”, comenta: “Não estaria em causa nem o crime de prevaricação nem perda de mandato.”
Joana Pacheco, 39 anos, morou quase toda a vida em habitação social. Em 2012, já com dois filhos, decidiu autonomizar-se e arrendou uma casa a poucos minutos da dos pais, numa altura em que os preços no centro histórico do Porto eram ainda comportáveis. Mas em 2017, a mãe morreu e os dias dela mudaram. O pai, com 89 anos e a morar sozinho, precisava de cuidados e Joana mudou-se com os filhos para ser a filha-cuidadora.
Numa casa social, tal mudança exige uma autorização da empresa municipal de habitação: sem ela, não pode um filho ou outro familiar qualquer permanecer numa casa onde não está inscrito, mesmo que o arrendatário precise de assistência. Joana Pacheco sabia-o e não o terá ignorado. De acordo com documentos partilhados pela portuense, pediu uma alteração da titularidade do contrato e solicitou uma integração de novos elementos no agregado familiar do pai. A câmara recusou as duas possibilidades, mostram os mesmos papéis, cuja existência é negada pela autarquia no seu comunicado, onde escreve que Joana Pacheco “nunca requereu” essa “autorização prévia”. Também o padre José Lopes Baptista, então provedor do inquilino, emitiu um parecer solicitando uma transmissão do arrendamento para Joana após o falecimento do pai. Mas não foi suficiente para convencer a Domus Social.
Conhecendo este e mais 19 casos onde o despejo está iminente, a CDU propôs na última reunião de câmara uma moratória de 90 dias a todos as situações e uma reanálise já à luz de uma nova matriz de avaliação dos candidatos e um renovado regulamento. A suspensão teve o apoio do PS, mas acabou rejeitada pelo PSD e pela maioria do executivo. “A ideia era contornar estas situações de profunda injustiça”, relembra Ilda Figueiredo: “Se tivesse sido aprovada não estaríamos a debater isto.”
A comunista não poupa nas palavras na hora de comentar o comunicado do executivo: “É pura e simplesmente mentira que tenha sido por causa da lei e do regulamento”, acusa, lamentando a “opção política inaceitável e de grande insensibilidade social”.
O artigo 21º do regulamento de gestão do parque habitacional do Porto prevê a possibilidade de “integração no agregado familiar de pessoas não inscritas, nomeadamente de filhos ou netos do arrendatário”, devendo essas ser “apreciadas pelo Município do Porto e autorizadas quando se mostrem justificadas em motivo relevante e atendível”. Tal pode acontecer em duas circunstâncias: a de “carência económica e habitacional” da pessoa a integrar ou a “necessidade comprovada de suporte assistencial do arrendatário ou outro elemento do agregado familiar”. O PÚBLICO perguntou à autarquia por que razão o caso de Joana Pacheco, cuidadora informal do pai, não teve a aprovação da câmara apesar de cumprir esse critério, mas ficou sem resposta.
O desfecho desta história é para Susana Constante Pereira, deputada municipal do BE, uma “questão política”. E nem sequer é surpreendente: “É condizente com a postura da câmara em relação às soluções para habitação”, critica, sublinhando também a “falsidade” do argumento de cumprimento do regulamento e da lei. Na verdade, aponta, é exactamente o contrário, tanto no regulamento como na legislação.
Eis o que diz a Lei de Bases da Habitação de Setembro de 2019: “O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais não podem promover o despejo administrativo de indivíduos ou famílias vulneráveis sem garantir previamente soluções de realojamento.” Para a bloquista, Rui Moreira “executou um despejo sem ter uma solução para a família”.
Alberto Machado, líder da bancada dos sociais-democratas na Assembleia Municipal, não esteve na sessão desta segunda-feira nem conhece pormenores do caso de Joana Pacheco. Sem tecer comentários ao despejo em causa, sublinha a “posição de princípio do PSD”: a autarquia deve “encetar todos os esforços para evitar despejos” e essa deve ser sempre a “última hipótese”, mas todos os munícipes devem ser “tratados de igual forma” e “o regulamento é para cumprir”. O PÚBLICO não conseguiu contactar a representante do PAN.
124 despejos desde 2017
Para a Câmara do Porto, a situação não configura um despejo mas antes uma desocupação coerciva por ocupação indevida e abusiva, mas a definição de despejo prevista na lei de bases contraria esse argumento, ao considerar que esse configura um “procedimento de iniciativa privada ou pública para promover a desocupação forçada de habitações indevida ou ilegalmente ocupadas.” Desde 2017, foram 124, revela a própria câmara. De volta ao comunicado: “A senhora que ocupou a habitação tem dois filhos e, segundo se sabe, cerca de 1200 euros de rendimento mensal e tomou conta da casa que anteriormente estava arrendada ao seu pai, falecido, que era inquilino municipal, e onde a renda era de menos de 15 euros por mês por um T4 na Ribeira”.
Uma reintegração de Joana e dos dois filhos obrigaria a um reajustamento da renda de acordo com os rendimentos do agregado, sendo previsível a subida do valor. E Manuel Pizarro faz questão de sublinhar que, “mesmo a ser verdade esse rendimento de 1200, ele não exclui ninguém de uma candidatura”, algo que está previsto num diploma de 2018: as famílias com rendimentos mensais até 1715 euros podem ter apoio público para garantir uma habitação.
A necessidade desse ajustamento é óbvia para o vereador: “É impossível arranjar uma casa naquela zona do Porto a menos de 800 euros”, afirma. Uma rápida pesquisa em três sites de imobiliário pode facilmente comprová-lo: se a busca é por um T2 naquela geografia, e pondo 600 euros como tecto da renda (valor que supera largamente a taxa de esforço tida como aceitável pela ONU e pela lei de bases da habitação), a resposta é invariavelmente a mesma: “desculpe, não encontramos resultados”.