Qualquer adulto funcional e Bernie Sanders
De forma folgada, Bernie Sanders é o candidato democrata que melhor se apresenta para uma futura disputa com o atual Presidente. Talvez seja tempo de o Partido Democrata criar um novo cartaz.
Um cartaz do Partido Democrata americano lia assim: Eleições 2020: qualquer adulto funcional. Foi criado há pouco mais de mês e meio quando Donald Trump ainda estava envolto no processo de impeachment. A mensagem era clara e resumia em três palavras o sentimento de muitos em relação à atual presidência americana. Tal bastaria como oposição num mundo que fizesse sentido ou num país em que os acontecimentos se tivessem desenrolado de acordo com o que os democratas pretendiam. Só que a realidade é outra e os índices de popularidade atuais do Presidente americano não o desmentem: será preciso muito mais do que um mero adulto funcional para destronar Donald Trump em novembro.
Com isso em mente, e através da CNN e NBC, assisti ao presidental townhall do campo democrata, onde alguns dos candidatos responderam às perguntas de apoiantes do partido. Pude confirmar um Bernie Sanders que se destacou a léguas de todos os outros. Goste-se ou não, concorde-se mais ou menos, já em 2016 era assim e esse terá sido o grande erro de Barack Obama before leaving office. Sem se aperceber do que tinha pela frente do outro lado, devia-se ter puxado pela sua nomeação em vez de Hillary. Aos 78 anos, Bernie continua com a mesma energia e juventude que contagia muitos.
Do seu discurso e políticas, existem duas partes distintas. Uma bem mais moderada do que muitos querem fazer querer e outra que assenta diretamente no socialismo que tanta alergia cria a alguns dos próprios democratas. Compreende-se. Bernie refuta-o referindo que já existe socialismo corporativo nos EUA (dá mesmo a Amazon como exemplo). O que ele procura é implementar outro socialismo, mas de cariz democrático, tal e qual outros países espalhados pelo mundo. Defende-o através da concentração em áreas chave: da educação a um apoio maior às classes mais desfavorecidas.
A intransigência – ou, se se quiser, o Bloco de Esquerda que há em Bernie – surge quando promete um sistema universitário gratuito para todos. Como? Da mesma forma que pretende o mesmo sistema de saúde para todos os americanos. Promete consegui-lo através de um aumento de impostos estratosférico a todas as corporações que operam em Wall Street. (O seu site de candidatura apresentava um plano detalhado antes de ontem.) Ora, se a ideia de base por si só gera alguma simpatia entre as diferentes alas do Partido Democrata, os níveis a que chega esta taxação para cumprir o sonho da educação superior e saúde gratuita para todos acaba por recair numa política à la Corbyn do Reino Unido.
Existe uma diferença entre o caminho justo que tem em conta setores que passaram incólumes às crises que os próprios despertaram e um justicialismo de quem procura desfazer a criação de riqueza per si. Quanto mais Bernie toca na segunda, mais intransigente e implausível se torna aos olhos de alguns democratas. Com razão, diga-se. Ao não o fazer, aumenta a probabilidade de outros se identificarem com o combate aos níveis de desigualdade na educação para a classe média americana. Há largos anos que demasiados deles contraem empréstimos absurdos para entrar numa universidade.
Um dos pontos que tem elevado Bernie e que foi bem transmitido neste townhall são as doações que tem recebido e que, passados quatro anos, continuam a ser a causa principal da força desta candidatura. É notável que com poucas empresas envolvidas se tenha atingido os valores mais altos de contribuições individuais da história americana. Dá-lhe um certo leverage moral sobre outros candidatos democratas. Uma eventual escolha de um futuro vice-presidente também assenta num enquadramento distinto e é mais relevante do que para qualquer outro candidato presidencial. Caso leve a nomeação democrata e apresente na general election um número dois que seja uma espécie de rising star do partido e da ala mais moderada, Bernie Sanders mata dois coelhos de uma cajadada só. Por um lado, aproxima-se do mainstream do partido do qual nunca fez parte. Por outro, na eventualidade de ser eleito Presidente e ressentir-se de alguns dos problemas de saúde que teve nos últimos anos, assegura a corrida a um segundo mandato através de um nome consensual.
Tal e qual Trump em 2016, Bernie projeta uma luta contra um sistema corrompido. Mais do que uma corrida presidencial, criou um movimento que já dura através dessa luta. Nos seus apoiantes, embora de causa e forma distinta, também se encontram semelhanças aos de Trump na dedicação. Essa é outra das suas vantagens no campo democrata e enganem-se os que dizem que isso não será o melhor para a eleição geral.
Os extremos tocam-se na política, mas não será sempre e em todo o lado. Bernie Sanders não será o extremo oposto a Trump. Pelo menos, de forma completa. Mas, tal como ele, é contraditório na intransigência de algumas políticas que sustenta e são essas contradições defendidas com agressividade maior que se misturam como nunca hoje e que ganham terreno.
Por isso, e mesmo que o Partido Democrata se balance para a esquerda num primeiro momento, pouco importará na hora da verdade para os democratas e alguns dos republicanos mais moderados que se querem ver livres de Trump há muito.
A comprovar isto estão as recentes sondagens de diferentes fontes que colocam Bernie Sanders à frente de Trump em vários Estados do país. De forma folgada, é o candidato democrata que melhor se apresenta para uma futura disputa com o atual Presidente.
Talvez seja tempo de o Partido Democrata criar um novo cartaz.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico