A grandeza do gesto de Marega
Desta vez, se o racismo dos “ultras” dos estádios não morreu na condescendência dos que os toleram em nome da paixão pelo futebol, foi por causa de Marega
Destapou-se a tampa e, com a crueldade inerente às transmissões em directo na televisão, pudemos todos perceber como é falsa essa ideia de que os supostos brandos costumes dos portugueses são, de facto, brandos, quando em causa está a cor da pele. Bem sabemos que tudo se passou no caldeirão específico de um estádio de futebol, o lugar onde gente decente se torna boçal, onde a razão se perde para dar lugar ao instinto de tribo alimentado pela boçalidade, a animosidade ou até o ódio ao outro. Mas o insulto dito e repetido ao longo de intermináveis minutos, dirigido por centenas ou talvez até milhares de pessoas a Marega, aconteceu com a intencionalidade com que se usam as armas que ferem: foram ditos por um bando de bárbaros que acredita na sua supremacia racial, gritados em coro para reforçar o sentido dessa superioridade, repetidos ao longo do jogo para que a ofensa pudesse chegar à humilhação.
Se, desta vez, o racismo dos “ultras” dos estádios não morreu na condescendência dos que os toleram em nome da paixão pelo futebol, foi por causa de Marega. O caso atingiu a dimensão que atingiu, com direito a declarações do primeiro-ministro e do Presidente da República ou referências abundantes na imprensa internacional, porque o futebolista teve a coragem de assumir que há limites de tolerância à barbárie. Num jogo de máxima importância para as ambições do seu clube no campeonato, com milhares de pessoas a ver na televisão ou no estádio, Marega não caiu no relativismo, e saiu. Não, ele não é pago para aguentar insultos racistas nem a importância de um jogo de futebol pode alguma vez sobrepor-se à da dignidade humana ou do cumprimento dos valores e princípios constitucionalmente consagrados. Ao decidir sair, o futebolista deu um murro nos brandos costumes e obrigou um estádio, um clube e todo o país a encarar o problema do racismo.
O caso Marega é, por isso, grave, por ter comprovado a existência de comportamentos racistas arreigados na sociedade portuguesa, e tem de nos obrigar a reflectir sobre essa realidade e a exigir medidas para que se combatam. A começar por uma penalização ao clube em cujo estádio este incidente aconteceu e cujo presidente foi incapaz de o compreender e de condenar de imediato. Também ao nível da Liga, que deve ter um papel pedagógico na formação de públicos para o futebol. E a acabar no Governo, que deve analisar a possibilidade de agravar penas para este tipo de comportamentos.
Ainda assim, esse será o lado mais fácil para olhar o problema de frente. O mais difícil é encará-lo colectivamente, ou seja, no seio da sociedade política portuguesa. Portugal é um país onde há obviamente racismo, Portugal é um país onde o racismo é adornado em narrativas delicodoces e Portugal é um país que vive há tempo de mais sem tratar deste problema que, a cada passo, se manifesta, para nosso incómodo nas estatísticas, em casos de abusos policiais ou perturbações da ordem pública em bairros periféricos. Mas construir a partir do problema uma culpa colectiva, enraizada na História, cultivada com zelo e militância pela sociedade portuguesa de hoje e merecedora de castigo perpétuo servirá apenas para erguer barricadas que alimentam partidos extremistas e não cimentam um espírito de comunidade necessário para combater o racismo e defender as suas vítimas.
A grandeza do gesto de Marega é relevante neste contexto, porque nos confronta com os limites do que é tolerável a um ser humano. Era bom que esse gesto pudesse levar a sociedade portuguesa a entender que em causa estão valores e princípios básicos como os da dignidade ou da humanidade, valores que, por vezes, deixamos ultrapassar em graçolas ou em bocas de bancada. Deixar este exemplo de grandeza ser explorado pela histeria da extrema-esquerda anti-racista ou pela extrema-direita racista só servirá para fornecer utensílios de guerra aos energúmenos.