Eutanásia: precisões terminológicas
É mais correcto falar, na dogmática criminal, em “ajuda à morte”.
Com o objectivo de ajudar ao debate em curso, é essencial conhecermos o quadro penal em que a eutanásia é regulada. Partindo dos ensinamentos de Figueiredo Dias, um dos pais fundadores da nossa moderna ciência criminal, trata-se do “auxílio prestado, de acordo com a sua vontade, real ou presumida, a uma pessoa severa e irrecuperavelmente enferma, frequentemente em insuportável sofrimento, no sentido de lhe permitir uma morte em condições que o enfermo reputa, ou há razões para presumir que repute, humanamente dignas”. Distingue-se a eutanásia em sentido estrito – o processo de morte já se iniciou e esta está irremediavelmente próxima – e em sentido amplo – o enfermo pode ainda viver algum ou mesmo muito tempo, mas manifesta a vontade, ou esta é de presumir, de pôr fim a uma vida que, devido à doença e ao sofrimento, lhe aparece como insuportável.
É mais correcto falar, na dogmática criminal, em “ajuda à morte”, a qual conhece três modalidades: activa directa, activa indirecta e passiva. A primeira consiste em “por meio de um comportamento activo, [produz-se] a morte ou se apressa intencionalmente a ocorrência da morte”, como sucede com a administração de uma injecção letal. Em tais hipóteses, a punição faz-se a título de homicídio, com possível dispensa de pena por via do estado de necessidade do art. 35.º, n.º 2 do Código Penal (CP), ou seja, de uma causa de exclusão da culpa. Na indirecta, usam-se “meios destinados a poupar o moribundo a dores e sofrimentos quando é previsível um encurtamento eventual do período de vida como consequência lateral indesejada”, como na administração de doses crescentes de morfina. É defendido que, nestes casos, a conduta não é punida por estar dentro do risco permitido.
Finalmente, a ajuda à morte passiva traduz-se na “omissão ou interrupção de tratamento que determina um encurtamento do tempo de vida por forma tal que este deve considerar-se objectivamente imputável àquela” (ex. renúncia a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento intensivo que poderiam prolongar a vida do doente). Nesta modalidade, devem distinguir-se três possibilidades: o doente recusa a intervenção ou a continuação, pelo que é de respeitar a sua vontade, sob pena de se cometer o crime do art. 156.º do CP (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários), tal como a interrupção de tratamentos técnicos por indicação médica e a desejo do paciente, não puníveis criminalmente; se a actuação do profissional de saúde é contra a vontade expressa do paciente, o mesmo será sancionado por homicídio doloso omissivo, excepto se estivermos perante um “tratamento fútil”; se, por fim, o paciente não se encontra em condições de exprimir a sua vontade, o profissional tem o direito (e talvez o dever) de interromper medidas absolutamente inúteis, sendo que em caso de dúvida, decisiva é a determinação da vontade do doente se pudesse, de modo informado, pronunciar-se sobre a situação.
Um grande campo de hipóteses práticas de eutanásia foi entretanto recoberto pela Lei n.º 25/2012, de 16/7, a qual aprovou as “directivas antecipadas de vontade”, mais conhecidas por “testamento vital”. Trata-se de um “documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia psíquica [maior acompanhado, hoje], manifesta antecipadamente a sua vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente”.
Para além de outros, pode o testador optar por negar o seu consentimento para as seguintes condutas: “não ser submetido a tratamento de suporte artificial das funções vitais; não ser submetido a tratamento fútil, inútil ou desproporcionado no seu quadro clínico e de acordo com as boas práticas profissionais, nomeadamente no que concerne às medidas de suporte básico de vida e às medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte; receber os cuidados paliativos adequados ao respeito pelo seu direito a uma intervenção global no sofrimento determinado por doença grave ou irreversível, em fase avançada, incluindo uma terapêutica sintomática apropriada; não ser submetido a tratamentos que se encontrem em fase experimental; autorizar ou recusar a participação em programas de investigação científica ou ensaios clínicos”.
A Lei estabelece como limitações a estas estipulações que as mesmas “sejam contrárias à lei, à ordem pública [conceito de muito complexa fixação prática] ou determinem uma actuação contrária às boas práticas; cujo cumprimento possa provocar deliberadamente a morte não natural e evitável, em que o outorgante não tenha expressado, clara e inequivocamente, a sua vontade”. O testamento reveste sempre forma escrita, sendo assinado presencialmente perante funcionário devidamente habilitado do RENTEV (Registo Nacional do Testamento Vital), sendo válido por 5 anos, renováveis, se tal for declarado de modo expresso. Apenas podem fazê-lo os maiores de idade, os que não estejam em situação de acompanhamento, caso a sentença que a haja decretado vede o exercício do direito pessoal de testar e aqueles que sejam capazes de dar o seu consentimento consciente, livre e esclarecido.
Note-se que o conteúdo do “testamento vital” não deve ser respeitado pelos profissionais de saúde quando “se comprove que o outorgante não desejaria mantê-las; se verifique evidente desactualização da vontade do outorgante face ao progresso dos meios terapêuticos, entretanto verificado; não correspondam às circunstâncias de facto que o outorgante previu no momento da sua assinatura”. É óbvio que, “em caso de urgência ou de perigo imediato para a vida do paciente, a equipa responsável pela prestação de cuidados de saúde não tem o dever de ter em consideração as directivas antecipadas de vontade, no caso de o acesso às mesmas poder implicar uma demora que agrave, previsivelmente, os riscos para a vida ou a saúde do outorgante”.
A Lei criou ainda a figura do procurador de cuidados de saúde, que definiu como a “pessoa nomeada por documento escrito, pessoal e livremente revogável e aceite pelo nomeado, que pode renunciar a todo o tempo, através do qual se lhe atribuem poderes representativos para decidir sobre os cuidados de saúde a receber, ou a não receber, pelo outorgante, quando este se encontre incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente”. O procurador deve reunir as mesmas condições de capacidade que o testador e, em caso de divergência entre a vontade do primeiro e o “testamento vital”, prevalece o que deste último constar.
Se bem que haja ainda espaço para legislar sobre o tema – pelo que é essencial a discussão que se vem travando sobretudo desde a última legislatura –, o tratamento juscriminal que as modalidades de eutanásia merecem e as directivas antecipadas de vontade vieram já prever um amplo espaço de disposição sobre o próprio corpo em hipóteses de doença incurável e morte iminente.