Cancro pediátrico – o paradoxo do esquecimento
A mesma sociedade que não deixa esquecer que o cancro cruzou a vida de alguém esquece-se de investir no que seria determinante para uma vida melhor.
Ao reflectir sobre a temática do cancro pediátrico, neste 15 de Fevereiro — Dia Internacional da Criança com Cancro —, percebi, pela primeira vez, uma contradição inexplicável. Por um lado, não permitimos aos sobreviventes de cancro pediátrico esquecer a doença. Como?, perguntarão os que nunca pensaram neste assunto. Desde logo pelas sequelas que o cancro deixou nos seus corpos, nas suas mentes.
Claro que há sequelas inevitáveis para o estado actual da ciência e que derivam ou da doença, ou dos tratamentos. Existirão sequelas físicas e mentais evitáveis? Será que a investigação teria evitado que órgãos fossem afectados? Será que medicamentos adequados à pediatria seriam mais eficazes? Será que o acompanhamento psicológico teria melhorado o curso de uma vida? E no mundo do trabalho, será que lhes dão as mesmas oportunidades?
Quantas vezes a entrevista de emprego fica repentinamente pesada e muda de rumo quando um candidato assume que teve um cancro? Ah!, diz o empregador e pensa: inteligente, determinado e preparado mas seguramente as ausências ao trabalho serão inevitáveis!
E nas vidas pessoais, será que o estigma se mantém? Sim, mantém, dizem-nos muitos. Em coisas tão importantes como nos filhos que não consegue ter, seja porque era inevitável, seja porque era evitável, mas não houve espaço para se ponderar sobre a fertilidade no decurso do tratamento.
E perante uma vontade de adopção alguém diz: não o recomendaria porque teve um cancro aos quatro anos. Sei que está bem, mas nunca se sabe. Sei que tem meios, mas nunca se sabe. Sei que tem vontade e que é equilibrado, mas… nunca se sabe.
As portas que se fecham quando, para comprar a casa dos seus sonhos, tem de se recorrer ao crédito e se exige um seguro de vida que se não consegue obter.
A recusa que bate com estrondo na cara de alguém que quer um seguro de saúde e recebe uma resposta seca com justificação brutal: “Recusado – Leucemia”!
E em todas estas situações a contradição do esquecimento. A mesma sociedade que não deixa esquecer que o cancro cruzou a vida de alguém esquece-se de investir no que seria determinante para uma vida melhor.
Esquece que mais investigação talvez permitisse que as sequelas fossem menores, que em vez de haver 50% dos sobreviventes com sequelas, e destes pelo menos dois terços com sequelas graves, pudessem existir percentagens tão animadoras como o são os números da sobrevivência, que actualmente ronda os 80%.
Esquece o desenvolvimento de medicamentos dedicados exclusivamente à pediatria, assumindo aquilo que a evidência científica nega e que é considerar que uma criança é um adulto em miniatura e que um medicamento de adulto, dado em doses mais pequeninas, resultará na perfeição.
Esquece o investimento na saúde psicológica de quem teve uma doença que durante anos interrompeu a infância, a adolescência ou a juventude. O acompanhamento dos pais que ficaram com medo para sempre. Não o medo saudável de famílias onde a doença nunca entrou, mas o medo ameaçador que durante demasiado tempo colocou entre parêntesis a percepção de que os filhos lhes iriam naturalmente sobreviver, ser felizes…
Esquece o investimento nos médicos e nos profissionais dedicados, os quais, exaustos, só conseguem lutar pela sobrevivência sem terem tempo para a qualidade, a investigação, o estudo, o aprofundamento.
Esta é a contradição com que me confrontei. Com que se confrontam todos os dias os sobreviventes de cancro infantil. Quis partilhá-la convosco neste dia de sensibilização e lançar o desafio: deixemo-los esquecer lembrando-nos de que existem.