Rotular (n)a União Europeia
É alarmante que quase dois terços da população com menos escolaridade não saiba interpretar corretamente a informação que encontra nos produtos alimentares. A promoção da literacia alimentar deve ser uma prioridade se quisermos que medidas de saúde pública de intervenção no sistema alimentar (como a rotulagem) tenham de facto impacto.
Rótulos há muitos, pelo que a Comissão Europeia promete avançar com a proposta de adoção de um sistema único de rotulagem alimentar no espaço europeu. A medida será enquadrada na estratégia “Farm 2 Fork”, no âmbito da política alimentar que integra o European Green Deal. Com esta proposta, todos os países da UE estarão alegadamente aconselhados a adotar o mesmo sistema de rotulagem alimentar, facilitando a interpretação sem-fronteiras e auxiliando no esclarecimento do consumidor. A eurodeputada francesa Michèle Rivasi lidera a comissão que pretende que o sistema de rotulagem eleito para a UE seja o Nutri-Score, ele que foi pensado, criado e implementado em França, mas que já é também usado na Bélgica, Espanha e Luxemburgo.
O Nutri-Score é um sistema de rotulagem que expressa a qualidade nutricional de um produto alimentar numa letra e cor, com base em elementos da sua composição nutricional, como a quantidade de sal, açúcar e gordura. Os alimentos mais saudáveis são apresentados com a letra A destacada a verde, e os menos saudáveis do sistema de classificação possuem a letra E destacada a vermelho. Esta proposta do grupo liderado por Rivasi tem causado discórdia com os eurodeputados e governantes Italianos, uma vez que a avaliação qualitativa do Nutri-Score classifica muito negativamente certos produtos de origem italiana, como alguns queijos, azeite e enchidos. Matteo Salvini censurou o Nutri-Score, e acusou-o de ser “parte de um plano secreto concebido por Bruxelas para danificar a reputação dos produtos alimentares italianos”, num laivo da vitimização política a que já nos tem habituado.
Numa entrevista para o La Stampa, também a ministra da Agricultura Italiana Teresa Bellanova rejeitou o Nutri-Score, dizendo que não fornece informação suficiente ao consumidor. Itália contrapropôs então com um outro sistema de rotulagem alimentar, que indica a percentagem atingida da dose diária recomendada de cada nutrimento após ingestão de uma porção do alimento, optando por uma avaliação mais quantitativa. Na UE, eurodeputados socialistas e verdes não aceitam a posição Italiana, e pediram a assinatura da Iniciativa de Cidadania Europeia “Pro-nutriscore”, que visa tornar obrigatório o Nutri-Score no espaço da UE.
A rotulagem é um assunto sobre o qual me parece que se tem estudado muito e feito pouco, e um tema que é talvez até subvalorizado em relação ao impacto que tem no consumo. A experiência de transitar por compridos corredores de hipermercados, forrados a cores contrastantes, e com uma luz demasiado branca, é familiar à maioria. Perante a variedade de produtos que se apresentam disponíveis para compra, do ponto de vista da indústria, o rótulo é uma ferramenta essencial no marketing de um produto. Já para o consumidor, é uma ferramenta de aquisição de informação e tomada de decisão: comprar ou não comprar.
Para a maioria dos portugueses (76%, segundo um estudo sobre a perceção dos consumidores) os rótulos alimentares são a principal fonte de informação nutricional que consultam. No entanto, um rótulo lido e um rótulo compreendido são dois conceitos bastantes diferentes. É alarmante que quase dois terços da população com menos escolaridade não saiba interpretar corretamente a informação que encontra nos produtos alimentares. A promoção da literacia alimentar deve ser uma prioridade se quisermos que medidas de saúde pública de intervenção no sistema alimentar (como a rotulagem) tenham de facto impacto, e cheguem a um dos grupos populacionais que mais precisa: a população menos escolarizada.
No que diz respeito a sistemas de rotulagem que se baseiem em scores, semáforos, baterias, entre outras representações visuais, importa que a simbologia simples não leve o consumidor a classificar todos os alimentos apenas como “bons” ou “maus”. A diabolização de determinados produtos alimentares, e a sobrevalorização de outros, é um comportamento que entra em conflito com o que a Nutrição nos ensina. Importa perceber, por exemplo, que no caso do Nutri-score os cálculos para a classificação são feitos em relação a 100g de alimento, e que mesmo um alimento “A/Verde” não é certamente tão saudável se o consumidor ingerir duas ou três vezes determinada porção. Da mesma forma, um alimento como o azeite, rotulado segundo o Nutri-Score com “C/Amarelo”, não representa um perigo para a saúde no cenário de uma ingestão muito controlada e moderada.
Uma outra questão que deveria ser mais abordada aquando da promoção do Nutri-Score é que é um sistema arquitetado para permitir a comparação fácil de produtos do mesmo grupo alimentar: não faz sentido comparar um refrigerante light com azeite, ou um queijo com pão.
A adoção de rótulos que classifiquem qualitativamente ou quantitativamente o valor nutricional dos alimentos pode e deve ser um fator de encorajamento para que a indústria alimentar aposte na reformulação dos seus produtos, no sentido de os tornar mais saudáveis. Do prisma da promoção da saúde populacional, a literatura tem mostrado que sistemas de rotulagem alimentar que comuniquem de forma simples e clara o valor e características nutricionais do alimento são uma ferramenta útil para identificar mais facilmente opções alimentares saudáveis e, por conseguinte, melhorar a qualidade e quantidade da ingestão alimentar. Uma revisão ao Nutri-Score está agendada para 2021, e deverá envolver cientistas dos países onde estará implementado, resta saber se na altura serão já todos os membros da UE – ou não.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico