Eutanásia: em defesa do referendo
Choca o modo pressuroso e despachado com que alguns grupos parlamentares ou alguns parlamentares querem legislar sobre a matéria.
1. Nunca minimizando a delicadeza e a sensibilidade do tema, que não se presta a simplismos nem a maniqueísmos, sou convictamente contra a legalização da eutanásia. Nos anos mais recentes, escrevi, aliás, dois artigos em que dei conta dessa minha posição. Um primeiro, na Revista do Expresso, em Fevereiro de 2016, intitulado “In dubio, pro vita”. E um segundo, aqui neste espaço, em Maio de 2018, denominado “Eutanásia, um ‘não’ sereno”. Nesses dois textos, está o percurso argumentativo que fui fazendo, ao longo de muitos anos, e que me sedimentou a convicção. Está, por isso, devidamente esclarecida a minha posição sobre a substância do tema.
2. Mais uma vez, a Assembleia da República pretende resolver uma questão desta densidade e desta complexidade, sem que tenha havido um amplo e profundo debate nacional. A aceitação da eutanásia – da eutanásia activa em sentido próprio – toca os fundamentos e os princípios da vida de qualquer sociedade. Diz respeito ao mais profundo dos mistérios humanos – a morte – e, por isso, mexe directamente com sentimentos, crenças, razões que povoam o mais íntimo de cada um de nós e da nossa esfera relacional. Não é aceitável, numa sociedade democrática, que uma decisão desta natureza e deste alcance, ainda que tomada por uma instância legítima, venha a sê-lo sem um alargadíssimo debate nacional, esclarecido e esclarecedor. A tomada de uma decisão desta envergadura, pela sua implicação antropológica, não pode ser reduzida a uma simples e mera tramitação parlamentar. Não se trata aqui de mais uma lei, entre centenas delas. Trata-se da decisão que legaliza ou pode legalizar a eutanásia.
3. Admito, por razões de ordem bem diversa e até de sinal contraditório, que haja alguma resistência que este tipo de matérias – aquelas que dizem respeito à vida humana, à sua subsistência e protecção, à sua configuração como direito – seja objecto de referendo. Para aqueles que perfilham a mundividência de que os direitos fundamentais não se referendam e não estão sequer à disposição do eleitorado ou do do legislador, o referendo é inadmissível. Como para outros, e talvez nos antípodas destes últimos, a complexidade do assunto não se coaduna com as opções binárias, de simples “sim” ou “não”, que, no quadro de uma campanha, tendem a extremar-se e a radicalizar-se. Digo, de resto, que se me parecesse que a sociedade portuguesa fez o debate maduro e aprofundado e que estava razoavelmente elucidada, não me bateria por um referendo. Comecei mesmo, durante largo tempo, por ter hesitações e resistências a um referendo sobre esta questão. Mas, presentemente, em função do quase nulo debate existente na sociedade portuguesa e, mais ainda, de uma profunda confusão conceitual, afigura-se imperativo defender a organização de um referendo.
4. Os resultados deste défice de debate começam logo por se ver numa preocupante confusão conceitual. Uma parte relevante daqueles que dizem ser a favor da legalização da eutanásia querem, com essa declaração, dizer apenas que são contra o encarniçamento terapêutico e que defendem cuidados paliativos que, por efeitos secundários, podem antecipar o momento da morte. Ou seja, muitas pessoas que recusam a obsessão terapêutica, em que a vida é quase que artificialmente prolongada, julgam que só evitarão essa prática se a eutanásia for legalizada. Ora, é preciso um amplo esclarecimento: aquilo a que se chama eutanásia passiva e que consiste na recusa desse tratamento obstinado é totalmente legal, consubstanciando uma prática comum, em rigor, uma boa prática médica. O mesmo se pode dizer da administração de fármacos e de tratamentos que, aliviando a dor e dando melhores condições de vida ao doente terminal, acabam por acelerar o momento da morte. É aquilo que, por vezes, se chama a eutanásia indirecta e que também congraça uma prática médica normal e recomendável, a todos os títulos permitida pela lei. Basta estar ciente de que uma enorme parte dos cidadãos não está ciente nem consciente destas diferenças e distinções para logo perceber quão importante é promover um fundo e vasto debate nacional.
5. Choca ainda de sobremaneira o modo pressuroso e despachado com que alguns grupos parlamentares ou alguns parlamentares querem legislar sobre a matéria. E não se compreende de todo o horror ou a repulsa que lhes causa, nesta questão particular, a organização de um referendo. Com efeito, será aceitável, será admissível, que uma matéria desta natureza possa ser decidida num simples e normal agendamento, como se de um mero regulamento se curasse? A dignidade do tema não justificaria uma grande campanha nacional, uma discussão participada e informada, precedida por debates no espaços mediático e das redes sociais, mas também por “assembleias dos cidadãos” inspiradas no modelo irlandês (que antecederam os referendos sobre o aborto e o casamento de pessoas do meso sexo)? Não seria esta uma ocasião magna para convocar os cidadãos, fazê-los partícipes do processo de discussão e decisores num assunto que tudo tem de humano e de íntimo? O que pode levar tantos responsáveis políticos, genuinamente interessados no bem comum, a não consultar directamente os seus eleitores numa matéria que, mais do que qualquer outra, lhes diz respeito?
6. Termino com uma nota breve, mas extremamente preocupante. A Holanda e a Bélgica têm sido pioneiras em matéria de suicídio assistido e de eutanásia. O balanço não é propriamente recomendável. Na Holanda, propõe-se agora que, ao atingir 70 anos de idade, cada cidadão receba uma “pílula sem dia seguinte”, que originará a sua morte assim que se decida a ingeri-la. Nada disto está agora em causa em Portugal. Mas a simples ponderação deste passo, diz muito sobre o que está em jogo e os riscos inerentes.
Que o referendo se faça.
SIM Álvaro Barreto. Um político e um patriota na melhor tradição dos servidores públicos, que combinava a competência técnica com o sentido estratégico e o rasgo cultural.
NÃO Procuradora-Geral da República. Se a nova directiva sobre o modo e conteúdo do exercício do poder hierárquico no Ministério Público não tem nada de novo, ela serve afinal para quê?