Dias cinzentos para a democracia
Só há uma forma de combater as crises dos países democráticos liberais: a renovação dos partidos tradicionais. Caso contrário, alguém o fará por eles.
As democracias ocidentais já conheceram melhores dias. Durante décadas elas pareciam avançar um pouco por todo o lado e no pós-Guerra Fria tiveram mesmo o seu momento triunfal, chegando a escrever-se que a história tinha acabado sob a forma de uma expansão universal da democracia liberal. De resto, esta tinha derrotado o nazismo, primeiro, o comunismo, depois, e não parecia restar qualquer adversário sério no longo prazo. Mas, ironicamente, aquilo com que nos deparamos nos dias de hoje é o que tem sido chamado de “recessão democrática”, que se dá a dois níveis: a um nível interno, com a crise dos nossos regimes; a um nível externo, com o surgimento de modelos alternativos como “o capitalismo de Estado” chinês ou a “democracia soberana” russa.
Curiosamente, o primeiro nível é o mais perigoso neste momento. Tal como escreveram os professores de Harvard, Steven Levitski e Daniel Ziblatt, e como temos percebido da pior maneira, as democracias morrem devagar, com pequenos golpes aqui e ali. E, segundo os mesmos autores, os principais responsáveis são os partidos políticos.
Há dois tipos de problemas que dificilmente escapam aos observadores.
Primeiro, os partidos políticos tradicionais não foram capazes de travar a vaga de descontentamento que se seguiu à crise financeira de 2008, nem tão pouco conseguiram evitar que esta crise, conjugada com a dos migrantes e os efeitos da globalização, evoluísse para um problema identitário sem precedentes. Os partidos populistas, nacionalistas e mesmo extremistas (por extremistas deve entender-se, entre outras coisas, antidemocráticos) foram-se normalizando dentro do espectro pluralista e assim ganharam um estatuto que lhes permite disputar e mesmo ganhar eleições. Dos Estados Unidos às fronteiras com a Rússia praticamente nenhum país ficou imune à ascensão dos extremos.
O outro problema – que, aliás, é a razão da força do primeiro – é a decadência dos partidos políticos tradicionais. Não só os Estados europeus acreditaram que estava na altura de deixar cair as ideologias em nome de uma homogeneidade radical, que, mal ou bem, veio confundir o eleitorado, como houve uma rutura violenta entre as pessoas comuns e as elites políticas devido ao facto de as primeiras não se sentirem minimamente representadas pelas segundas, como ainda os atores políticos e económicos se passaram a relacionar de uma forma tão íntima que o resultado prático foi a criação paulatina de esquemas de corrupção (termo usado aqui em sentido lato). Não deixa de ser irónico que há séculos se discutam as relações entre poder legislativo, executivo e judicial, mas tenhamos levado muito tempo a perceber que o poder económico corrompe tanto ou mais do que os outros.
É comum ler-se que Portugal é um caso à parte, diferente de todos os outros, pois tem estado imune aos vírus da crise: não tem questões identitárias, nem pressão de migrantes, nem imigração significativa, nem ameaças de terrorismo ou riscos de segurança de monta. Em parte, isto é verdade. Mas é apenas ingénuo pensar que o surto populista nacionalista (ou mesmo extremista) e a implosão dos partidos políticos tradicionais só acontecem aos outros. Até porque padecemos daquele que é o elemento comum a todos os casos de decadência de regime. A divisão da sociedade entre o povo (puro) e a elite (impura) e a revolta do primeiro contra a segunda, suspeita de não só ter deixado de representar os interesses dos representados, para cuidar apenas dos seus, como também de ter estado envolvida em esquemas generalizados de corrupção.
Tal levou a um descrédito profundo da classe política e das organizações partidárias que têm governado o país desde a instauração do regime democrático. Logo quando Levitski e Ziblatt vêm demonstrar que os partidos políticos são os verdadeiros guardiães da democracia. Assumindo aqui que isto é verdade, resta-lhes uma saída: reformarem-se.
Uma reforma que compreende restaurar as ideias que orientam a sua doutrina (para evitar expressões como “os partidos são todos iguais”); abrir sem restrições as estruturas a novos militantes e criar espaços para que possam militar de forma regular; captar as pessoas mais competentes nas respetivas áreas; voltar a representar a sociedade nos seus vários grupos (os empresários, os profissionais liberais, os trabalhadores dependentes, os funcionários públicos, os agricultores, os reformados, os jovens, os intelectuais, e por aí fora); reforçar a sua implantação ao nível local, em estreita ligação às populações e às suas organizações; adotar códigos de ética rígidos no que diz respeito à promiscuidade entre política/partidos/negócios, ser implacável no combate à corrupção.
A alternativa é que os partidos tradicionais sejam diretamente substituídos nas urnas pelos partidos anti-sistema, o que em vários países já está a acontecer, verificando-se três modalidades: ou venceram as eleições e formaram governo; ou conseguiram um número significativo de assentos parlamentares, tornando-se imprescindíveis para constituir o executivo; ou, ainda, obtiveram um resultado significativo nas preferências eleitorais e tornaram-se poderosas forças de oposição.
A verdade é que estes são dias cinzentos para a democracia. Os países democráticos liberais atravessam um conjunto de crises: uma crise de regime, uma crise no sistema político-partidário, uma crise de confiança nas mais importantes instituições dos Estados. Só há uma forma de combater: a renovação dos partidos tradicionais. Caso contrário, alguém o fará por eles.
Professor Associado da Universidade Nova/Investigador Integrado do IPRI; militante do PSD
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico