Dia Mundial da Leitura em Voz Alta: Não deixem que os media vos mintam
Para assinalar o Dia Mundial da Leitura em Voz Alta, 13 alunos juntaram-se à Andante – Associação Artística e trabalharam o poema A implosão da mentira, do brasileiro Affonso Romano de Sant’ Anna. Vão gritá-lo neste sábado em Setúbal.
“Mentiram-me. Mentiram-me ontem e hoje mentem novamente./ Mentem de corpo e alma, completamente./ E mentem de maneira tão pungente/ que acho que mentem sinceramente.” Começa assim o poema que subirá ao palco do Cinema Charlot – Auditório Municipal, em Setúbal, neste sábado, às 10h30. Um espectáculo intitulado Evidente Mente.
“Começámos por querer falar sobre o medo, e do medo passámos rapidamente à mentira. Andávamos às voltas com os textos a usar e, um pouco por acaso, caiu-nos no colo o texto de Affonso Romano de Sant’ Anna A implosão da mentira”, diz ao PÚBLICO Cristina Paiva, actriz, rosto e corpo da Andante – Associação Artística. E explica: “É um poema em cinco partes que o autor publicou em 1981 num jornal, ainda durante a ditadura brasileira.” Em 1984, viria a ser integrado no livro Política e Paixão (Editora Rocco).
Foi assim que chegaram ao tema fake news (notícias falsas), explorado por um grupo de 13 alunos da Escola Secundária du Bocage, do 7.º ao 12.º anos. Quem escolheu o estabelecimento de ensino foi o Plano Nacional de Leitura, mentor da iniciativa e que no ano passado já havia convidado a Andante para assinalar este dia, que decorreu então no Auditório de Alcochete, sob o tema refugiados e ancorado no livro Club Med, de João Pedro Mésseder (texto) e Ana Biscaia (ilustração).
Ler mais, ler melhor
Como é que a mentira se relaciona com a leitura e, em particular, com a leitura em voz alta? “Quanto pior lermos, mais facilmente as mentiras passam. É preciso ler bem. É preciso ler mais. É preciso investigar mais, querer saber mais, ter curiosidade”, começa por explicar a criadora da Andante, que o fez há 20 anos em parceria com Fernando Ladeira. E prossegue: “Quando se lê em conjunto, as pessoas têm tendência a conversar sobre as coisas, a pensar sobre elas, a discutir, a ter opiniões diferentes. É isso que queremos, que pensem, cheguem a posições diferentes, que a leitura os leve a isso.”
Quando planeiam as apresentações e leituras, acrescentam-lhes sempre “um lado de arte”, para conquistarem o maior número de pessoas. Porque não duvidam: “Isto não está propriamente para brincadeiras.” Deste modo, pensaram que os jovens “deviam apresentar algo verdadeiro, que incluísse as coisas deles e as dos outros, mas com peso”.
Assim, convidaram o artista plástico Américo Prata, que fez a animação digital, o actor João Brás, para estar em palco com Cristina Paiva, “a puxar por eles”, e ainda Lucília Telmo, arquitecta, professora de Artes Visuais e figurinista, “para trabalhar a imagem dos garotos: primeiro pensou-se em figurinos e depois fomos mais para os adereços”, descreve. “Fez um trabalho muito engraçado, estou para ver como é que resulta”, diz entusiasmada, nas vésperas do espectáculo.
Alunos diferentes e especiais
Os alunos foram recrutados na escola através de clubes de leitura, de teatro ou de outras comunidades de interesses. “Procurou-se jovens que quisessem à partida fazer isto, que estivessem motivados previamente”, até porque havia pouco tempo para a preparação: seis ensaios (dois em Dezembro, quatro em Janeiro).
São “especiais” e até vistos como “cromos” ou “exóticos”. Mas isso não os afecta, têm preocupações mais importantes e genuínas, segundo nos conta a mediadora de leitura. “São miúdos diferentes da maioria dos daquela escola, que estão muito preocupados com as notas, numa competição feroz para chegar o mais longe possível.”
Eles próprios formaram clubes de leitura “e estão imenso tempo na biblioteca, que é um gelo do pior”, relata.
“D. Quixote? O homem era doido”
Cristina Paiva, que também dirige um coro em que não se canta (Coro de Leitura em Voz Alta), conta, feliz, como uma das participantes lhe apareceu com uma edição de D. Quixote de La Mancha, de Cervantes, depois de lhe ser dado a conhecer o início do livro nas sessões de preparação para o espectáculo. “Acho que é do 8.º ano. Apareceu-me com um calhamaço do D. Quixote, que nenhum dos que eu tenho é daquele tamanho. São algumas 900 páginas e anda a carregar com aquilo. E a ler. Mesmo.”
Perguntou-lhe: “Estás a gostar?” Resposta: “Isto é muita… grande e o homem era doido. Levou quatro dias para escolher um cavalo e a seguir dá-lhe o nome de Rocinante.”
Cristina Paiva conclui: “Eu, que sou apaixonada pelo D. Quixote, não pensei que o dava a conhecer a uma miúda tão nova e que ela se pusesse a ler e a ter opiniões sobre a maluqueira que é o D. Quixote. Fiquei banzada…” E feliz. “Estou muito contente com eles, entusiasmo-me muito. Venho de lá rouca, afónica, mas acho que vale a pena”, revela.
Para terminar e consciente de que estes miúdos já lhe apareceram com predisposição para a leitura, diz: “Para mim, é maravilhoso. Pode parecer cliché total, mas eu fico embasbacada com os garotos. O tipo de energia que têm nesta idade, o tipo de inocência, a capacidade de ir para a frente e de construir pelo prazer de construir (sem ser para nada). Aquilo não lhes vai acrescentar coisíssima nenhuma, à luz do que os adultos esperam deles. Estão ali porque se divertem e porque estão a debater-se contra dificuldades e a ultrapassá-las uma de cada vez. Eles dizem o texto do autor e aquilo parece uma manifestação. É uma maravilha.”
No ano passado, a Andante – Associação Artística ganhou o Prémio PNL Ler+, que é atribuído a uma entidade ou a uma pessoa que tenha desenvolvido nos últimos três anos projectos de literacia. Resulta de uma candidatura que é paga pelo BPI, no valor de dez mil euros.
O World Read Aloud Day (Dia Mundial da Leitura em Voz Alta) foi promovido em 2010 pela LitWorld (Be the story), uma organização não governamental sem fins lucrativos que tem por objectivo que os jovens de todo o mundo tenham um maior contacto com a leitura, a escrita e a narrativa.
Depois da apresentação de Evidente Mente, haverá lugar para Palavras em Voz Alta, com a participação de Susana Amador, secretária de Estado da Educação, Teresa Calçada, comissária do Plano Nacional de Leitura, Ricardo Oliveira, vereador da Educação da Câmara Municipal de Setúbal, e Pedro Tilde Gomes, director da Escola Secundária du Bocage.
“Página branca onde escrevo. Único espaço de verdade que me resta./ Onde transcrevo o arroubo, a esperança, e onde tarde ou cedo deposito meu espanto e medo./ Para tanta mentira só mesmo um poema explosivo-conotativo/ onde o advérbio e o adjectivo não mentem ao substantivo/ e a rima rebenta a frase numa explosão da verdade./ E a mentira repulsiva/ se não explode pra fora/ pra dentro explode implosiva”, assim termina o poema de Affonso Romano de Sant’ Anna.