As fotografias da vida em Fukushima — nove anos depois do desastre nuclear
Em Restricted Residence, o fotógrafo inglês Giles Price retrata o regresso das pessoas a Namie e Iitate, localidades evacuadas em 2011 depois do acidente na central nuclear de Fukushima Daiichi. Ainda há muitas dúvidas sobre os efeitos que os moradores podem sofrer a longo prazo na saúde física e mental.
Dia 11 de Março de 2011. Um sismo intenso causa um tsunami que danifica profundamente a central nuclear de Fukushima Daiichi, no Japão. Os sistemas de arrefecimento dos reactores explodem, libertando material radioactivo para o ar e a água. O desastre é considerado o mais grave desde Tchernobil, e cerca de 150 mil pessoas em áreas contaminadas são forçadas a abandonar as suas casas devido aos potenciais perigos para a saúde. Várias localidades transformam-se assim em “cidades-fantasma”. Nove anos depois, o fotógrafo londrino Giles Price mostra, com recurso a uma câmara termográfica, a vida desconcertante e intranquila de quem teve a coragem de regressar.
Entre o fim de 2017 e o início de 2018, Price fez duas viagens a Namie e Iitate, localidades que ficaram desertas na sequência do acidente nuclear e que o governo japonês entretanto declarou como seguras. O que não quer dizer que muitos tenham arriscado a regressar. “Costumava haver 27 mil pessoas aqui e voltaram apenas algumas centenas”, conta o britânico por email ao P3.
A zona abandonada onde estas pessoas estão a começar do zero está registada em Restricted Residence, livro lançado pela editora Loose Joints a 16 de Janeiro. O projecto recolhe as “simples cenas do quotidiano” desta nova realidade, bem como a tensão silenciosa que paira sobre o ar respirado em Namie e Iitate. Campos cobertos por vegetação com a ocasional cabana abandonada aqui e ali, edifícios em estado de degradação, um típico ambiente de escritório ou uma mulher que apenas fita a lente. Imagens aparentemente banais, mas que ganham novos contornos através da aplicação da termografia, técnica geralmente “utilizada para vigilância industrial e medicina”. A “abstracção visual” que as cores sugerem interessa particularmente a Price e transporta quem as observa para o ambiente do desastre nuclear de 2011. Que, aponta, “não é uma memória distante”.
Para realizar este projecto, o autor ficou alojado a 80 quilómetros destas cidades-fantasma. Percorria regularmente a auto-estrada 114, que une o centro de Fukushima a Namie e que, lembra, “só recentemente foi reaberta” para circulação. “Não podes parar o carro e tens de manter as janelas fechadas para minimizares a exposição à radiação.”
Quando chegou a Fukushima, “o centro já estava descontaminado”, mas “na periferia ainda havia pontos de radiação elevada”. O fotógrafo caminhou sempre com um contador Geiger para conseguir medir o nível de radiação e saber até que ponto era seguro “seguir em frente”. “É estranho”, sublinha, “ires por vontade própria a um sítio que sabes que foi (e está) contaminado por precipitação radioactiva”.
Foi nessas condições que fotografou “os pescadores que receberam um apoio do Governo para comprar barcos novos, mas não podiam pescar porque as águas estavam cheias de radiação”, ou “o taxista que, como só tinha uma mão cheia de clientes por semana”, recebia um apoio estatal para ali se manter. Assim descobriu as histórias dos “traumas escondidos de quem vive num ambiente alterado”, devido a um acidente que talvez pudesse ter sido evitado. Em Maio de 2011, uma comissão de peritos que o Governo japonês criou para avaliar os modos de resposta ao acidente nuclear apontou para “atrasos nos trabalhos anti-sísmicos” dentro da central de Fukushima Daiichi, referindo que, apesar de desencadeado por causas naturais, o desastre “deveria e poderia ter sido previsto e prevenido”.
O interesse de Giles Price pelos efeitos de “crises ambientais provocadas ou agravadas pela actividade humana” não é recente. O fotógrafo serviu na Marinha e esteve no Curdistão em 1991, durante a Guerra do Golfo. Lá, foi “exposto a níveis de radiações tóxicas muito elevados”, que levaram à falência de órgãos internos e provocaram um regresso prematuro a casa, com alta médica.
Em Restricted Residence, continua a explorar territórios que, devido a intervenções externas, nunca mais poderão ter a mesma configuração. “Aquelas cidades mudaram para sempre”, reflecte, e, da mesma forma, “as pessoas não podem voltar à vida antiga que tinham”.
Porquê, então, regressar a Namie e Iitate? Giles Price acredita que “há quem sinta que não tem muitas mais opções”. Diz que o Governo japonês tem criado incentivos através da construção de novas casas, mas lembra ainda as queixas das pessoas que voltaram — “Elas contavam-me que tinham deixado de receber os subsídios de que precisavam para se realojarem depois da evacuação”, recorda o fotógrafo.
A propósito dos Jogos Olímpicos de 2020, organizados em Tóquio, os líderes do Japão estão a tentar acelerar a regeneração de Fukushima, que vai receber eventos de basebol e softball, mas há preocupações sobre a rapidez com que as zonas afectadas pelo acidente nuclear estão a ser declaradas livres de perigo. Em Dezembro de 2019, a organização ambiental Greenpeace alegou que ainda podem ser encontrados pontos de elevada radiação no complexo desportivo da província onde a cerimónia inaugural dos Jogos Olímpicos decorrerá.
“Têm sido reveladas muitas informações contraditórias sobre as implicações a longo prazo para o bem-estar de quem voltou a viver nas cidades-fantasma”, salienta Giles Price. “A Organização Mundial de Saúde considera que haverá mais problemas relacionados com saúde mental do que física” e os mais novos estão “particularmente reticentes quanto ao regresso”, porque não querem “expor os filhos a esse tipo de ameaça”.
A população de Namie e Iitate divide-se entre a incerteza e a sensação de que não há grandes alternativas a não ser regressar ao sítio que já foi casa. Restricted Residence é, aos olhos do autor, um retrato de sacrifício e desespero, mas também de “resiliência humana”.