Filipe Froes: “Estamos a lidar com a imprevisibilidade da evolução do novo coronavírus”

Médico pneumologista resume o que já se sabe sobre o novo coronavírus, as incógnitas e que medidas deverão ser aplicadas.

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Filipe Froes Daniel Rocha

O médico pneumologista Filipe Froes é o representante da Ordem dos Médicos para as questões ligadas ao novo coronavírus, o 2019-nCoV. O coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos Médico-Cirúrgicos do Hospital Pulido Valente, em Lisboa, realça que, embora haja ainda muito por saber sobre este vírus, este surto deve ser abordado nem com alarmismos nem com indiferença. Mas tem uma certeza: o risco deste tipo de surtos será permanente para a humanidade.

Este vírus surpreendeu o mundo. Ele é, de facto, surpreendente?

Não é surpreendente. Aliás, este é um fenómeno recorrente. Só nos últimos 20 anos, o mesmo já aconteceu com a família deste vírus duas vezes: em 2002 com o SARS-CoV e em 2012 com o MERS-CoV. Ciclicamente, há vírus que conseguem atravessar a barreira das espécies, ou seja, saem de uma espécie animal e conseguem passar para a espécie humana, causando doenças. Agora, temos a capacidade de detectar isto com mais frequência e acompanhar à escala global.

O que é que já se sabe sobre este novo coronavírus?

Provavelmente, o hospedeiro principal será o morcego e terá ou não existido um hospedeiro intermediário que permitiu a passagem para o ser humano. Também sabemos que tem uma sequência de genes entre 70% a 80% semelhante ao do SARS-CoV. O período de incubação pode ir até aos 14 dias, mas na maior parte dos doentes o aparecimento dos sintomas ocorreu entre o sétimo e o oitavo dia. Embora, de acordo com os dados disponibilizados, afecte mais adultos e o género masculino, há dados que provam já causou doença em todos os grupos etários.

Até agora, segundo a informação das autoridades chinesas, entre 20% a 25% dos casos estão associados a pneumonia e entre 10% a 15% ligados à síndrome de dificuldade respiratória. O que caracteriza estes quadros clínicos? Segundo dados publicados na revista The Lancet, uma grande maioria tem febre alta, seguida de tosse seca. Alguns dos doentes evoluem para falta de ar e outras dificuldades respiratórias. Há uma pequena percentagem de doentes que pode ter diarreia, mas é inferior à encontrada noutros surtos como o do MERS-CoV.

Ainda não sabemos muita informação nem se isto se aplica a populações diferentes da China. Verificámos que só há mortalidade e casos graves na China. Até à data, nenhum dos casos na Europa, nos EUA e no Canadá é grave nem ninguém faleceu. O SARS-CoV teve uma taxa de mortalidade de 10%, que é muito significativa. Até agora, a do novo coronavírus é de 3 ou 4%.

A maioria das estirpes de coronavírus circula entre animais e não chega a infectar os humanos. O que terá acontecido aqui?

Aconteceu o que é normal na natureza: houve um vírus que conseguiu encontrar uma chave para se ligar a um receptor humano. Se houver situações de grande proximidade com animais – provavelmente de animais doentes –, isso permitirá a inalação de uma grande carga viral do animal para o humano e criam-se condições para que o vírus se possa replicar. Como é um vírus completamente novo para o humano, tem a capacidade de desencadear doenças.

A virulência associada à diversidade entre espécies animais faz com que, pelo menos no início, o vírus seja mais difícil de se transmitir entre humanos. À medida que se vai adaptando, transmite-se mais, mas vai perdendo algumas características que o diferenciam em relação ao vírus que tinha [inicialmente] infectado os humanos. Geralmente, o processo de adaptação de um vírus que passa do mundo animal para os humanos percorre este caminho. Mas há sempre imprevisibilidade e a sua evolução só poderá ser documentada no final. Neste momento, estamos a lidar com uma situação de imprevisibilidade da evolução do novo coronavírus.

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Novo coronavírus JULIAN DRUCE/Instituto DOHERTY

Quais as razões para este surto ter surgido na China?

A China tem uma dimensão imensa e representa uma fatia populacional enorme com diferentes grupos populacionais. Os hábitos alimentares incluem a ingestão de muitos animais diferentes e mercados onde é possível vender e adquirir animais vivos. Tudo isto proporciona situações de maior proximidade e de risco de exposição que não se verificam noutros países.

Como está a ocorrer a transmissão entre humanos?

Por agora, está confirmado que existe transmissão eficaz entre humanos e que, nalguns casos, isso aconteceu antes de as pessoas apresentarem sintomas.

Que células afecta?

As células do aparelho respiratório. O principal elemento de ligação para entrar nas células é, provavelmente, um receptor chamado ACE2, que é um receptor mais predominante no aparelho respiratório inferior. Isto poderá explicar o maior número de casos de pneumonias e de formas graves que possam ocorrer [porém, com menor facilidade de transmissão]. Mas não sabemos se haverá outro receptor. Para existir uma maior facilidade de transmissão, mais queixas nas vias aéreas superiores e casos de menor gravidade, terá de haver outro tipo de receptores ou então tudo isto acontece em pessoas com maiores proporções de ACE2 nas vias aéreas superiores.

Este vírus é mesmo mais infeccioso do que o SARS-CoV?

Neste momento, não sei se temos conhecimentos que nos permitam dizer isso. Ainda nem sabemos o número real de pessoas infectadas nem toda a dimensão do problema na China. Relativamente ao número de casos da China, há um número pouco significativo de casos na Europa, nos EUA ou no Canadá. Se fosse muito infeccioso, era previsível que acontecesse nestes países o que aconteceu com o SARS-CoV, em que houve um surto enorme no Canadá.

Em que fase pode ser mais contagioso?

Provavelmente, deve ser entre o 10.º e o 12.º dia. Mais ou menos, isso acontecerá dois a quatro dias depois do início das queixas.

Há pessoas que podem ter maior capacidade de contágio?

No SARS-CoV, houve pessoas que tinham a particularidade de poder transmitir o vírus com maior quantidade viral: eram os superdisseminadores. Isso ainda não está documentado no novo coronavírus, mas poderá explicar que algumas pessoas possam ter tido maior capacidade de infectar outras e em períodos pré-sintomáticos. Pode ter sido o que se passou na Alemanha: uma superdisseminadora [de nacionalidade chinesa] teve uma reunião no dia 21 [com a pessoa que infectou] e começou a ter sintomas no dia 23. As pessoas infectadas na Alemanha começaram a queixar-se no dia 27 e 28. Em princípio, seria assintomática ou, se calhar, tinha uma forma muito ligeira de sintomas que não valorizou. Tudo isto precisa de ser analisado. Acho importante estarmos a olhar para o que se passa na China, mas a situação na Alemanha será importante em termos de conhecimento. Os casos europeus serão fundamentais para complementarmos a informação disponível e que provém da China. 

A China tem sido elogiada pela rapidez da sequenciação do genoma e pela transparência dos dados. Aprendeu com o SARS-CoV?

Muitas vezes, os elogios prendem-se com o que aconteceu precisamente no passado com o SARS, em que houve censura e bloqueio de informação. A China até aprendeu uma coisa simples: nenhum país isolado tem capacidade para lidar com um surto a esta escala. Temos muito mais capacidade de responder, analisar e compreender quando trabalhamos em rede e com transparência.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem-se mostrado relutante em declarar emergência global de saúde pública. Porquê?

A OMS está a avaliar muito bem o que se passa para tomar a decisão mais adequada em termos de benefício para controlo do surto e de minimização dos prejuízos que essas medidas possam ter. Declarar emergência global tem implicações muito grandes em termos de restrições de viagens ou de comércio. A OMS tem de ponderar de acordo com o conhecimento e a gravidade da situação. E tem actuado bem: estas decisões têm de ser tomadas da forma mais ponderada e racional possível sem alarmismos nem indiferença.

Mas será inevitável?

O que acontecerá é imprevisível devido à evolução do vírus e do comportamento das pessoas. Há diferentes níveis de risco. O risco de um país com voos directos e mais próximo da China é diferente do de um país que não os tenha.

Qual o risco em Portugal?

Não é nulo. Vivemos num mundo global e pode haver algum caso. Temos de estar preparados para o detectar precocemente e minimizar o risco de transmissão na comunidade.

Estamos preparados?

Nesta fase, estamos. Em teoria, estamos sempre preparados. Na prática, só o saberemos quando tivermos um caso.

O que tem achado das medidas da China, como as quarentenas?

É preciso ter mais informação. A China está a mostrar uma grande intenção em tentar controlar o surto. Neste momento, o que foi feito pelas autoridades chinesas tem sido eficaz na menor transmissão de casos para fora da China.

E quanto ao repatriamento dos portugueses em Wuhan e do não isolamento compulsivo?

Quando os portugueses chegarem e de acordo com o conhecimento que se tiver na altura, serão adaptadas as medidas necessárias. Aquilo que agora nos pode parecer insuficiente poderá ser adequado ou inadequado com o que se souber na altura. Presumo que muitos destes doentes quererão estar em isolamento até para não contagiar os mais próximos. Em Portugal, é a Direcção-Geral da Saúde que coordena este processo e, até agora, tem coordenado bem. Também já tinha dado provas disso na pandemia de gripe A e do surto de Legionella. Se dúvidas houvesse sobre a importância de um Serviço Nacional de Saúde forte, estes surtos dissipam-no em absoluto.

Que medidas deverão ser ainda aplicadas?

As medidas mais importantes serão o desenvolvimento de fármacos específicos e de uma vacina. Nos fármacos específicos, estão-se a aplicar alguns com experiência nos doentes com infecção pelo VIH, que é o lopinavir e o ritonavir, bem como o remdesivir [desenvolvido para o tratamento do vírus do ébola]. Provavelmente, até terão a ser experimentados outros. Há dúvidas sobre a importância e o interesse de certos tipos de medicamentos, nomeadamente dos corticosteróides, porque têm uma resposta exagerada do sistema imunitário e até se sabe que na gripe podem ser prejudiciais. Para tratarmos estes doentes, precisamos rapidamente de informação.

Algumas linhas de investigação da vacina também retomaram os trabalhos feitos para o SARS-CoV. Mas uma vacina tem de ser testada ainda em termos de eficácia e segurança. O mais útil seria uma vacina para uma parte comum destes vírus, de maneira a evitar estes surtos no futuro.

Como estão a ser tratados os doentes?

Com a terapêutica de suporte de órgão, que usamos em muitas outras doenças. Aquilo que fazemos é manter a homeostasia do doente, muitas vezes através de fármacos ou dispositivos que asseguram a função do órgão, de maneira a dar tempo para o organismo recuperar. Por exemplo, quando o pulmão deixa de ter capacidade para as trocas gasosas, asseguramos essas trocas através do ventilador. Ao fazermos isso, vamos dando tempo para que o pulmão se vá reparando de maneira a assumir progressivamente a sua fisiologia. Se houver um fármaco específico, teremos a vida mais facilitada.

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Caso suspeito na China Reuters

É assim que serão tratados possíveis doentes em Portugal?

Neste momento, o que está disponível em Portugal são unidades de cuidados intensivos com terapêutica de suporte de órgão e isolamento, para evitar o risco de transmissão quer para as visitas quer os familiares.

Como pode a ciência preparar-nos para estes surtos?

Pensa-se que entre dois a três microorganismos por ano emergem ou reemergem com capacidade de causar doenças nos humanos. Agora temos meios de diagnóstico, de monitorização e vigilância que nos permitem detectar com mais frequência esses episódios e acompanhá-los à escala global. No caso da Legionella, em que os primeiros casos surgiram em 1975, só se identificou a bactéria quase um ano depois. Agora tivemos a capacidade de detectar o vírus e de sequenciá-lo em semanas. Tudo o que for feito em termos de melhoria dos métodos de diagnóstico, de monitorização e de actuação vai permitir-nos detectar mais situações destas.

Como pode travar-se este vírus?

O risco de infecções por microorganismos antigos emergentes ou reemergentes é perpétuo. Este será um risco permanente para a humanidade. Agora temos é uma maior capacidade de caracterizar [os vírus]. De vez em quando, os microorganismos têm a capacidade de provocar doenças por mecanismo de novidade, emergência ou reemergência. Temos de nos habituar e perceber que isto pode acontecer, sem alarmismo nem indiferença, mas com actuação e conhecimento.

Podemos chegar a uma pandemia?

Tudo é possível.

Como nos podemos preparar?

Manter as redes de vigilância e ir aprendendo com episódios anteriores, de maneira a criarmos mais conhecimento e novas ferramentas.

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