Novo coronavírus: do laboratório ao terreno, enquanto a epidemia cresce

O número de infecções pelo novo coronavírus que surgiu em Dezembro na China já ultrapassou os casos reportados em 2003 durante a SARS, mas, para já, a taxa de mortalidade é inferior.

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Vigilância de passageiros no aeroporto da Coreia do Sul EPA/YONHAP

A Organização Mundial da Saúde (OMS) vai reunir-se esta quinta-feira para, pela terceira vez no período de uma semana, decidir se classifica como emergência global de saúde pública o surto de coronavírus, que surgiu em Dezembro na cidade chinesa de Wuhan e já soma 132 vítimas mortais e mais de 6000 casos de infecção. Enquanto as autoridades de saúde de vários países se preparam para responder a esta epidemia, os cientistas desdobram-se em esforços para saber mais sobre este novo vírus. Entre os vários avanços, destacam-se dois estudos clínicos que já foram publicados na revista The Lancet e o anúncio de uma equipa de investigadores em Melbourne, na Austrália, que garante que conseguiu “produzir” o novo vírus em cultura de células.

Esta quarta-feira, o responsável pelas situações de emergência na OMS, Michael Ryan, assegurou aos jornalistas que a China está a adoptar “medidas extraordinárias para enfrentar um desafio extraordinário”. Segundo adiantou, a epidemia continua centrada sobretudo na cidade de Wuhan e na província de Hubei, mas a situação (actualizada hora a hora) pode mudar. A maioria das pessoas infectadas apenas estará a manifestar sintomas ligeiros e, por enquanto, a estimativa da taxa de morte é inferior a 3%. No surto da síndrome respiratória aguda grave (SARS) em 2003 foi de 10%.

Apesar deste cenário, o vírus parece estar a espalhar-se para outros países, tendo sido registado esta semana o primeiro caso de transmissão entre humanos na Europa, na Alemanha. Esta quarta-feira, o coronavírus já tinha sido detectado em 15 países, ainda que 99% dos casos de infecção confirmadas se encontrem na China. A viagem do novo coronavírus (2019-nCoV) para fora da China terá sido uma das razões para a reunião do comité de especialistas que foi convocada para esta quinta-feira pelo director-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.

É preciso reagir ao problema de saúde pública com medidas de contenção e, ao mesmo tempo, acelerar também os esforços para compreender o novo coronavírus que ainda tem muitas facetas desconhecidas. Do mesmo lado, estão as autoridades de saúde pública e equipas de cientistas em todo o mundo numa corrida contra o tempo para responder ao crescente número de pessoas infectadas com o novo coronavírus detectado em 2019.

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Mercado de Wuhan a 10 de Janeiro de 2020 REUTERS/Stringer

Os primeiros relatórios com dados clínicos sobre os doentes infectados na China já estão disponíveis online e acessíveis a todos os investigadores. Os dados sobre os primeiros doentes infectados foram publicados na revista The Lancet em dois artigos separados. Resumidamente, os dois estudos concluem que este novo vírus causa sintomas semelhantes aos relatados com a SARS e confirmam que o 2019-nCoV pode transmitir-se entre pessoas infectadas e entre cidades.

Assim, um dos estudos revela que os sintomas entre os primeiros 41 casos do novo coronavírus e a SARS são semelhantes, e o outro, publicado ao mesmo tempo, relata a transmissão de pessoa a pessoa e a disseminação entre cidades do novo coronavírus em seis membros da mesma família.

Estes relatórios clínicos envolvem um pequeno número de doentes, mas são importantes porque ambos sublinham a possibilidade de aumentar as hipóteses de conter a infecção 2019-nCoV através de uma “vigilância cuidadosa, rastreio activo de contactos e investigações robustas para descobrir os hospedeiros do vírus entre animais e as vias de transmissão para os seres humanos”.

Numa notícia publicada no site da revista Science são citados especialistas que constatam que estes estudos clínicos divulgados na The Lancet parecem colocar em causa a hipótese avançada inicialmente sobre a origem deste vírus no mercado (com animais vivos) de Wuhan. Isto porque, entre os 41 casos analisados num dos trabalhos, 13 não tinham qualquer ligação ao mercado, já encerrado. Analisando os dados clínicos reunidos, Daniel Lucey (especialista em doenças infecciosas na Universidade de Georgetown, nos EUA) defende que “antes de o vírus sair do mercado de Wuhan, ele entrou no mercado” de alguma forma ainda desconhecida. Agora, olhando para trás, os investigadores que comentam os artigos agora publicados lembram ainda que os documentos oficiais apenas afirmaram que “a maioria” dos casos tinha o mercado como fonte. Mas isso não significa todos os casos, notam.

Outra das novidades no complexo processo de investigação do novo vírus surgiu também esta quarta-feira na Austrália com o anúncio da primeira equipa fora da China a revelar que foi capaz de (re)criar o novo coronavírus no laboratório, em cultura de células, num passo que pode ser extremamente importante para testar eventuais tratamentos e também para apurar as técnicas de diagnóstico. De acordo com uma notícia da Nature, a equipa do Instituto para a Infecção e Imunidade Peter Doherty, em Melbourne, terá isolado o vírus do primeiro caso de infecção confirmado na Austrália, a 25 de Janeiro. Os investigadores vão agora partilhar este vírus feito em laboratório com outras equipas de cientistas que também estão a trabalhar com a OMS para combater esta ameaça de saúde pública. “Há algumas coisas que são muito mais fácies de fazer quando temos o vírus”, constatou Mike Catton, um dos elementos da equipa na Austrália.

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Fotografia de uma imagem do vírus "produzido" no laboratório por investigadores na Austrália EPA/THE PETER DOHERTY INSTITUTE FOR INFECTION AND IMMUNITY

Aparentemente, os investigadores em Melbourne não foram os primeiros a “fabricar” o vírus porque outros cientistas na China reclamaram ter feito o mesmo, no entanto, ainda não terão partilhado as suas amostras com investigadores de outros países. No início do mês de Janeiro a China partilhou a primeira sequência do genoma do vírus com a comunidade internacional de cientistas, numa atitude de transparência que já foi elogiada várias vezes pela OMS.

As amostras de vírus vão ajudar os cientistas a desenvolver testes que podem detectar células do sistema imunitário (anticorpos) específicos para melhorar os diagnósticos, o que pode ser particularmente útil nos casos assintomáticos ou com sintomas muito ligeiros. Por outro lado, também vão servir para investigar o comportamento do vírus e, claro, testar eventuais tratamentos.

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Mike Catton, um dos elementos da equipa de cientistas que "produziram" o vírus no laboratório da Austrália EPA/JAMES ROSS

É claro que os cientistas estão a avançar, mas o vírus também está. Nos últimos dias, as autoridades de saúde de vários países no mundo foram pressionadas a reagir rapidamente e a tomar decisões difíceis perante um problema de saúde pública que está a mudar dia após dia e com muita informação ainda incompleta ou desconhecida. Sob o princípio da precaução, muitos países estão a optar por fazer regressar os cidadãos que estão na China e a colocá-los em isolamento durante alguns dias para evitar a transmissão do novo coronavírus.

Depois de França e do Reino Unido, entre outros, Espanha foi um dos países que anunciou esta quarta-feira que vai colocar os cidadãos retirados da China em “quarentena”. As autoridades de saúde em Portugal mantêm a posição de analisar caso a caso a situação dos portugueses que chegarem da China até ao final desta semana e decidir as necessárias medidas de tratamento e/ou isolamento que tudo indica que sejam cumpridas voluntariamente.

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