“Desnormalizar” a extrema-direita
É saber de onde vieram, de quem são criaturas, e para onde vão. E mostrar que não é fácil encontrar alguém mais filho do sistema do que André Ventura.
A perda de imunidade do Parlamento nacional face à nova extrema-direita não significa que ela deixe de ser o que é: residual. Há fatores que nos protegeram e há muitos desafios pela frente, mas a “desnormalização” da dita será um deles.
A História, a sociedade e a política pouparam-nos, até às últimas eleições, deste fenómeno que, sendo global, deve ser visto e combatido na sua dimensão doméstica. A memória da Revolução de Abril e do fascismo, a ausência de processos relevantes de imigração e asilo, a falta de condições para a paranoia securitária ou a captura pela esquerda do debate identitário ajudam a explicar porque nos safámos até 6 de outubro. A “geringonça”, a pressão dos direitos do trabalho, a convocação da política como negociação constante foram preventivas.
Hoje, a exigência à esquerda é maior, com o PS mergulhado no seu caldo maioritário, porque foi na derrota da social-democracia e na hegemonia do centro político e do neoliberalismo que estes partidos se afirmaram desde os anos 80. Os avanços do trabalho com direitos, das lutas com todos os seus nomes, do estado social, ditarão muito do que pode ser feito no combate ao crescimento desta direita radical populista, que é um dos traços mais marcantes do nosso momento histórico.
Posto isto, 1,29% para o Chega, mesmo considerando o frenesim das sondagens, ainda está longe da reconhecida “barreira do perigo” (10%) que permite a estes partidos apresentarem-se como uma alternativa “normal”, apostados em mudar o sistema por dentro (ver Enzo Traverso, The new faces of fascism…, pp. 7-8). O mainstreaming da direita radical populista é, aliás, o espaço onde a direita tradicional se reconfigura, favorecendo a diluição de fronteiras entre ambas (ver Cas Mudde, The far right today, p. 23) e contribuindo para a dita normalização.
Ora, não é fácil acertar na resposta a Ventura sem correr o risco de o “normalizar”. Não se deve entrar em histeria e não se deve ficar em silêncio; não se deve dar a dimensão que não têm, nem ignorá-los; não se deve responder ao insulto, mas a certeira resposta política recentemente dada no Parlamento não deixa de configurar uma disputa entre pares. A comunicação social, os partidos políticos e organizações, cada um/a de nós (e o que se partilha nas redes sociais) devem fazer avaliação de risco.
Há quem diga, e a investigação reconhece, que era mais eficaz bani-los. Sem o melhor recurso à mão de semear, e enquanto se avaliam outras modalidades de relação (demarcação, confronto, cooptação), reconheça-se que um dos mais úteis e preventivos instrumentos é conhecê-lo/s. E é conhecê-los bem como produto do sistema. É saber de onde vieram, de quem são criaturas, e para onde vão. Contará para isso a investigação que dispa o “rei” que se diz em confronto com a “elite dos políticos corruptos”, e que mostre que não é fácil encontrar alguém mais filho do sistema do que André Ventura.
O caso Tutti Frutti, a pensão vitalícia do seu porta-voz da segurança, as faturas falsas, o neoliberalismo radical do programa que prometia a destruição do estado social, tudo isto conta. É preciso continuar e ir mais longe, conhecer os amigos, os padrinhos e os compadres, os negócios e os sucessos na academia, a rede de poderes que fez desta criatura do PSD de Passos Coelho, apaparicada pela Cofina, o gancho da nova extrema-direita no parlamento nacional. Tudo bons rapazes, antecipa-se.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico