“Calar Ana Gomes seria uma vergonha internacional”
Alegações finais do julgamento que opõe empresária angolana Isabel dos Santos e ex-eurodeputada Ana Gomes sobre seis tweets e branqueamento de capitais foram feitas esta quinta-feira.
O que representam os seis tweets que a ex-eurodeputada Ana Gomes escreveu sobre a empresária angolana Isabel dos Santos que são o centro do processo judicial que opõe as duas mulheres? Nas alegações finais do julgamento, esta quinta-feira no Tribunal de Sintra, saíram dois retratos opostos: são um “massacre” e “assédio” que ofendem o bom nome da filha do ex-Presidente de Angola e são um acto de “coragem” e “cidadania”.
“Ana Gomes é em Portugal das vozes mais críticas, mais livres e mais independentes. Não quer dizer que esteja sempre certa, nem que seja sempre elegante, nem que tenha sempre as coisas bem ditas. Calar esta senhora seria uma vergonha internacional”, disse Francisco Teixeira da Mota, advogado da diplomata (em licença de vencimento do Ministério dos Negócios Estrangeiros), ao fechar as alegações finais deste breve julgamento, que teve apenas duas sessões. “Tentar apagar e censurar o que esta senhora diz por uma via expedita, quase uma providência cautelar, seria uma vergonha.”
Carlos Cruz, advogado de Isabel dos Santos, descreveu a sequência de tweets publicados em Outubro pela ex-eurodeputada como “um acto reprovável” e uma “narrativa”. “É de narrativa que se trata: uma ficção que uma pessoa desenvolve que não tem de colar à realidade. Há cartas, há correspondência. Mas há indícios, há evidências, há vestígios de ilícito criminal? Não há. Há um conjunto enorme de ruído, mas não há provas. É uma mão cheia de nada.”
Isabel dos Santos — que em Portugal é accionista relevante no Banco EuroBic, na Efacec e na Nos — processou Ana Gomes por ofensa ao bom-nome, personalidade e reputação, alegando que os tweets “induzem o leitor” na “convicção difamatória” de que é corrupta e usa o Banco EuroBic para “lavar dinheiro”. A juíza Susana Achemann fará a sentença por escrito.
“Ana Gomes não tem qualquer fundamento para afirmar o que afirma”, disse Cruz. “É curioso que diga: ‘Se é a mulher mais rica de África, não tem de pedir empréstimos.’ Todos os empresários se endividem! O Warren Buffett, o Bill Gates, todos! A ré sabe isto. Se recorre a estes argumentos é porque não tem outros. Este argumento é muito pobrezinho, não vale um caracol. Ou há fundamento ou não há e, não havendo, não é liberdade de expressão.” Cruz insistiu que as testemunhas e os documentos oficiais provam que houve a due diligence reforçada exigida por lei para negócios feitos em Portugal por pessoas politicamente expostas (PEP), como Isabel dos Santos.
À ideia de ausência de provas, Teixeira da Mota (que é advogado do PÚBLICO) disse que “há duas verdades”, uma das quais é “a verdade documental”. “Lula da Silva dizia que não era proprietário da casa por não ter feito a escritura. Mas os tribunais brasileiros consideraram que ele era corrupto porque tinha aceite a casa como um benefício. Não são os papéis, era só o que faltava! A verdade não é o que está nos documentos oficiais. Para isso, deixávamos de ter jornais e comunicação social e passávamos a ter apenas o Diário da República. Líamos o Diário da República e ficávamos a saber a verdade.”
Além disso, neste caso, disse o advogado, mesmo os papéis provam a acusação que Ana Gomes faz sobre a ausência de controlo feita em Portugal sobre os negócios da empresária angolana. Teixeira da Mota leu no tribunal uma passagem de um relatório do Banco de Portugal de 2015 sobre o Banco BIC (hoje EuroBic): “São pequenas coisas que dão uma noção do que se passava no banco de Isabel dos Santos: ‘Foram observadas diversas lacunas na obtenção de informação legalmente exigida em sede de dever de diligência: em 80% dos casos inexistiu uma adequada caracterização de actividade do cliente; em 68% dos casos analisados, não foram solicitadas informações acerca da finalidade e natureza pretendida com o estabelecimento de negócio; em 44% dos casos, não era possível compreender adequadamente a estrutura de propriedade e controlo destes clientes; em 92% dos casos, inexistia informação comprovada acerca da finalidade e natureza da relação de negócio e em 87% dos casos inexistia informação comprovada acerca da caracterização da actividade do cliente.”
Teixeira da Mota disse também que “a liberdade e expressão não existe para proteger quem tem o consenso ou o comum dos raciocínios, porque esse está protegido”. “A liberdade de expressão serve para as pessoas minoritárias e que estão fora do sistema poderem falar. Essas pessoas é que nos fazem falta. Quantas pessoas se atrevem a criticar Luís Filipe Vieira [presidente do Benfica] em Portugal? Quantas? Não há muitas. Porquê? Porque há um consenso. Mas há pessoas que são corajosas. Ana Gomes é uma delas.”
A acção de Isabel dos Santos recorre ao processo “especial de tutela da personalidade”, um instrumento jurídico de uso raro em Portugal, criado em 2013 para “evitar a consumação de ameaça ilícita e directa à personalidade física ou moral do ser humano ou a atenuar, ou a fazer cessar”. Por isso, Cruz disse, em tom indignado, ter ficado “chocado, como advogado e como pessoa”, com o que Ana Gomes disse na sessão anterior do julgamento: “Disse que há reputações e reputações. Esta afirmação é um exercício da mais deplorável condescendência. Não há pessoas de primeira e segunda em questões de direito à personalidade. Há pessoas. Quem é Ana Gomes para se arvorar em árbitro do nível de reputação das pessoas?”
Na resposta, Teixeira da Mota respondeu que “Isabel dos Santos é fantástica: é a mulher mais rica de África, a fortuna dela e a forma como a esbanja e ostenta é fantástica, desde o iate ao avião passando pelas festas. Inacreditável num país onde, segundo uma reportagem da Forbes, as pessoas vivem com dois dólares por dia. É chocante e sinistro. A riqueza desta senhora vem do facto de o seu pai ter estado 40 anos no poder. Não vem com certeza das suas poupanças. Isto é tudo política. Esta senhora é uma política.”