André Ventura – a vergonha e o charlatão
O discurso de André Ventura, no estrito plano da boçalidade retórica, em nada se distingue de um certo tipo de discurso que a extrema-esquerda há muito tempo introduziu no debate parlamentar.
O charlatão e o profeta tornaram-se duas figuras referenciais dos tempos que atravessamos. O charlatão é um cínico que cultiva a pretensão de ser levado a sério. O profeta idolatra convicções e teme ser objecto de qualquer tipo de dúvida. Um e outro são perigosos. Ambos desvalorizam o campo da argumentação racional, do debate aberto e livre, da contraposição plural de opiniões e pontos de vista. Para o charlatão as ideias, os projectos e as aparentes certezas são meros instrumentos descartáveis, destituídos de peso e de densidade. Para o profeta a ambiguidade, a indeterminação, a incerteza são sinais de uma fraqueza originada por motivações moralmente duvidosas. Na sua oposição, charlatães e profetas convergem num ponto fundamental: o debate democrático é-lhes igualmente estranho.
O charlatanismo político está presente em quase todas as correntes doutrinárias e representa uma das maiores ameaças à credibilização pública dos regimes democráticos. Há, porém, quem se esmere no zelo com que o pratica a ponto de conseguir, assim, singularizar-se no contexto político em que opera. Nas últimas semanas assistimos em Portugal a um exercício prático revelador de quão irreprimível parece ser a vertigem pró-charlatanista de alguns eleitos políticos. Refiro-me a André Ventura, o solitário representante do partido mais à direita existente no Parlamento português. Com impressionante desfaçatez o novel deputado presta-se amiúde à peculiar tarefa de afirmar tudo e o seu contrário. Elevou mesmo esta inclinação até patamares quase demenciais. A enunciação de um antagonismo entre um discurso académico dotado de uma suposta validade científica e um discurso político de natureza mais livre, e como tal mais autêntica, remete para o domínio de uma patológica inconsistência. Imaginemos um físico que se desdobrasse num Dr. Jekyll empenhado em demonstrar a veracidade científica da lei da gravidade e num Mr. Hyde apostado em convencer os seus amigos e familiares a atirarem-se tranquilamente de um décimo primeiro andar para a rua.
Reconhecendo que há obviamente uma diferença entre o mundo do conhecimento e o mundo da opinião, e admitindo mesmo que esses dois mundos se estruturam segundo regras metodológicas diversas, afigura-se implausível, contudo, que um mesmo sujeito possa formular nesses dois campos posições absolutamente antagónicas. Quem assim procede age de um modo tão radicalmente atentatório dos mais elementares princípios de verosimilhança que não pode senão merecer o epíteto de um praticante do charlatanismo político.
Há, contudo, que afirmar, em nome do rigor que o próprio charlatanismo visa constantemente ofender, que até agora nada no discurso político de André Ventura aponta para uma adesão a uma doutrina fascista, tal como ela se configurou historicamente. Dada a natureza da personagem não é impossível que possa evoluir nesse sentido, mas o que é facto é que até hoje não o fez. Não se vislumbra nenhuma vantagem em atacá-lo por aquilo que ele não é ou, noutra perspectiva, ainda não é e não é legítimo afirmar que inevitavelmente venha a ser. Ventura é um demagogo sem escrúpulos e isso já é suficiente para ser devidamente contestado num debate sério e frontal. É isso que se espera que ocorra, semana após semana, na Assembleia da República.
O Presidente da AR, político sério e experiente, entendeu censurar o deputado do Chega pela excessiva utilização da palavra vergonha numa intervenção proferida por este no Parlamento. Tal censura tem motivado ampla discussão pública. Essa discussão tem sentido e pode ser útil. Ferro Rodrigues verberou uma retórica de carroceiro que considerou indigna do debate parlamentar. Embora questionável este gesto não é destituído de sentido. O verdadeiro problema, porém, é outro: o discurso de André Ventura, no estrito plano da boçalidade retórica, em nada se distingue de um certo tipo de discurso que a extrema-esquerda há muito tempo introduziu no debate parlamentar. É certo que nos últimos tempos se tem auto-domesticado mas todos facilmente nos recordaremos da forma imprópria como durante anos tratou os seus adversários parlamentares, incluindo o próprio PS. Na época da troika, quando governava Passos Coelho, a extrema-esquerda instrumentalizava as próprias galerias da Assembleia numa clara manifestação de desconsideração pela instituição parlamentar.
Sendo assim, Ferro Rodrigues pode ser atacado por usar dois pesos e duas medidas. Essa contestação tem fundamento e, aliás, extravasa largamente o campo de acção do Presidente da Assembleia da República. Nos tempos que correm tende-se a ignorar com impressionante facilidade os desmandos dogmáticos, autoritários e sectários praticados pelos extremistas de esquerda, como se estes pudessem beneficiar de uma inimputabilidade política originada pela suposta bondade das suas intenções. A verdade é que não podem. A circunstância de se colocarem num pretenso lugar profético não lhes confere nenhuma legitimidade de tipo especial. Na prática, tal como referi inicialmente, a distância entre o charlatão e o profeta é bem menor do que aquela que separa ambos dos defensores das democracias liberais.