Violência doméstica: o debate que não cabe num título de jornal

É absolutamente insuportável que em quinze anos tenham sido assassinadas mais de 500 mulheres e que mais de mil crianças e jovens tenham ficado órfãos.

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Daniel Rocha

O combate à violência doméstica tem de ser uma prioridade do Estado e de todos. É absolutamente insuportável que em 15 anos tenham sido assassinadas mais de 500 mulheres e que mais de mil crianças e jovens tenham ficado órfãos. No debate sobre a violência doméstica é fundamental não partidarizar o tema nem apresentar falsas soluções.

É também dever de quem se pronuncia sobre esta matéria reconhecer que a lei que temos é boa. Deve ser alterada, claro, quando se justifique, mas mentimos ao país se dissermos que os obstáculos a uma luta bem-sucedida contra a violência doméstica estão sobretudo na lei.

Na última legislatura, CDS, PSD, PAN e BE responderam ao número elevado de mortes ocorridas em contexto de violência doméstica no início de 2019 com um conjunto abrupto de projetos de diplomas tributários do populismo penal a que PS e PCP disseram não.

Para quem não se recorde, estava em causa, nomeadamente, criar restrições à suspensão da execução da pena de prisão nos processos por crime de violência doméstica (que é apenas uma possibilidade) e elevando a moldura penal deste crime (como se levar a moldura penal diminuísse a ocorrência do crime), bem como impedir a recusa de depoimento por parte da vítima de violência doméstica (reduzindo a zero a sua autonomia) e proibir a suspensão provisória dos processos por crime de violência doméstica.

Assim que esta legislatura começou, BE e PAN reapresentaram projetos de lei sobre violência doméstica sem que pareça ter sido de grande relevância o debate havido há tão pouco tempo.

Por um lado, quer tornar-se obrigatória, nos casos de violência doméstica, a recolha de declarações para memória futura das vítimas, em jeito de antecipação da prova. Esta proposta, comum ao BE e ao PAN, viola a autonomia da vítima porque prescinde da sua vontade e, além disso, põe em causa o sentido do regime jurídico da recusa de depoimento contemplado no artigo 134.º do Código de Processo Penal. O que me choca é termos debatido há tão pouco tempo o projeto de lei do PSD que pretendia impedir a recusa de depoimento por parte da vítima de violência doméstica e que venham agora BE e PAN apresentar estes projetos.

Por outro lado, pretende-se reconhecer as crianças que testemunhem ou vivam em contexto de violência doméstica enquanto vítimas desse crime (BE e PAN). Estas iniciativas são também repetidas.

Há aqui vários problemas que têm escapado a alguma imprensa.

As crianças e jovens são hoje consideradas vítimas de qualquer crime nos termos do artigo 67-A do Código de Processo Penal. Foi por isso que na anterior legislatura a Procuradoria-Geral da República considerou esta proposta redundante.

Por outro lado, tendo em conta o artigo 152.º do Código Penal (violência doméstica), os menores já são protegidos diretamente pelo catual n.º 1 sempre que: (1) sejam sujeitos a presenciar a violência exercida contra a progenitora e que (2) essa sujeição seja qualificável como maus tratos psíquicos, nos termos gerais (n.º 1, al. d)). Nesse caso, os tribunais devem condenar por concurso efetivo (tantos crimes quantas as vítimas). Estender o tipo para além disso significa equiparar condutas que não constituem maus tratos psíquicos à violência (física ou psíquica) propriamente dita, perdendo-se o elemento da violência que dá nome ao crime. Ou a exposição é uma violência - e já é incriminada pelo n.º 1 - ou não é violência, e não deve ser punida.

Por outro lado, e concretamente tendo em conta a redação do projeto de lei do BE, o que ali se está em causa é a criação de uma nova forma de violência doméstica (as crianças passam a também serem vítimas indiretas se estiverem presentes mesmo que não sofram com o ato, que pode ser um telefonema ou um insulto).

Ora, esta solução é de muito duvidosa constitucionalidade, porque dificilmente se encontra o bem jurídico com relevância penal e proporcional que justifique que alguém seja punido com uma pena de cinco anos porque uma criança visualizou algo, por exemplo, na rua. É que na verdade, tendo em conta a redação do projeto de lei do BE, não estando em causa o núcleo familiar, é justo perguntar se o homem que bate na mulher é responsável por mais três crimes de violência doméstica se o fizer na rua e for visto por três menores que vão a passar.

O PS não tem o exclusivo da boa legislação em matéria de violência doméstica, claro que não. Mas tem conseguido manter-se fiel ao bom Direito, mesmo quando é popular fazer o contrário.

O debate é esta quinta-feira.

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