O mundo rural cabe no Terreiro do Paço?
O que estas gentes vieram dizer à capital é que o país pode continuar a confiar nelas para os novos desafios, assim como contou na recuperação do lince-ibérico, pois são os seus costumes antigos que melhor viabilizam a sustentabilidade territorial.
O mundo rural cabe no Terreiro do Paço?
Guardiões dos costumes rurais de todo o país invadiram o Terreiro do Paço e manifestaram-se pacificamente. Embora pareça apenas mais uma, em semana de manifestações, qual será o objetivo desta mobilização pelo mundo rural? O que terá impelido estes ruralistas a entrar pelas ruas da capital?
Terão sentido falta de representatividade num país urbanizado e litoralizado, em que escasseiam os votos da agricultura? Ou a falta de poder numa economia em que a comida fabricada e globalizada suplanta a produção nacional?
Provavelmente estes motivos causarão apreensão ao mundo rural, mas não terão sido a força motriz da manifestação, até porque são fenómenos graduais a que tenta há muito resistir. Já lá vai o tempo da predominância agrária na sociedade portuguesa.
A gota de água terá sido o ataque cerrado às suas tradições rurais, que pouco dizem ao cidadão urbano, mas que são a essência da vida no campo. Foram sobretudo as touradas, a caça e a pesca que trouxeram estas gentes a Lisboa. Porque são esses os gestos que novos movimentos e partidos populistas querem esquartejar, moralizar, politizar, referendar, e até proibir em nome de uma civilização que mostram desconhecer e tentam descontextualizar. Tirando o bife das cantinas e o sangue jovem das arenas, depressa calarão os gritos dos porcos e as cabras dos montes! Matando o queijo das serras e todos o bichos do mato quem cortará os incêndios?
Hoje só os guardiões do mundo rural mantêm estes costumes antigos dos primórdios da humanidade, antes mesmo da agricultura. Se a caça capta até ao paleolítico, a tourada representa a domesticação animal que inicia a própria revolução agrícola. São estes os tesouros guardados em cada lance de caça, em cada potro desbastado, em cada touro pegado, trazidos dos tempos em que só a entreajuda humana suportava a natureza bruta de cada investida.
Em pleno individualismo industrial ou pós-industrial, pode parecer museológico preservar costumes antigos, numa era em que até já se faz a edição genética. Mas num planeta cada vez mais insustentável e em emergência climática é essencial retomar os ritmos antigos e os usos adequados aos territórios fragilizados. E são essas profundas relações que estes costumes recriam, são esses equilíbrios com o meio natural que é preciso restaurar.
A agricultura portuguesa não ficou arredada do produtivismo moderno e muito se contaminou por monoculturas rápidas industrializadas e especializadas em produtos globalizados. Mas é precisamente por isso que sobressaem estas culturas extensivas como a caça e a silvopastorícia que subsistem ao longo da história até nos terrenos mais pobres. Porque é nesses montes e vales, nessa maior parte do país, onde tudo arde e se desertifica, que as soluções do mercado não vingam.
O que estas gentes vieram dizer à capital é que o país pode continuar a confiar nelas para os novos desafios, assim como contou na recuperação do lince-ibérico, pois são os seus costumes antigos que melhor viabilizam a sustentabilidade territorial.
Este profundo apelo dos campos pode não abrir telejornais, pode até não entrar nesta sociedade acelerada, pode mesmo ser confundido com reações simplistas, mas deve ser levado muito a sério por quem quiser pensar no futuro do interior e do país como um todo!
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico