Rui Paula: “O momento três estrelas Michelin há-de chegar inevitavelmente a Portugal”
A Casa de Chá da Boa Nova já tinha uma arquitectura exclusiva, num local único. Agora tem também duas estrelas. O futuro guarda mais boas novas para a gastronomia portuguesa, diz o chef.
Rui Paula chegou a Leça da Palmeira quase sem dormir. Em Sevilha, deram-lhe a boa nova: a segunda estrela Michelin para a Casa de Chá da Boa Nova. Quando chegou à cozinha deste restaurante, em Leça da Palmeira, a primeira palavra que disse foi “obrigado”. Repetiu-a várias vezes. “Obrigado, obrigado”. Era mais do que um agradecimento. Foi uma partilha.
Menos de 24 horas antes, na gala do guia Michelin, as primeiras palavras do chef também tinham sido para “a equipa”. Rui Paula emocionou-se. “Eu até estava tranquilo, antes do prémio. Mas de facto, naquele ambiente, só com estrangeiros na minha categoria, quando comecei a falar no palco, em português, e a falar da equipa, emocionei-me logo, porque eles não estavam lá.”
Era uma ausência meramente física. Em Leça da Palmeira, a chef Catarina Correia, que comanda a cozinha, mandou parar as operações. “Ficámos todos a ver a transmissão online. Foi uma festa quando se confirmou”, conta. Os 40 clientes que estavam no restaurante ouviram as palmas, a celebração. Dois deles, um casal alemão estreante da casa, acabaram por enviar um email por volta das 21h15. Em duas linhas, sintetizaram o que todos pensavam: “Inteiramente merecido.”
A segunda estrela já era esperada. Mas é tão fresca que a placa afixada junto à entrada continuava hoje a ter apenas uma. "Era uma ambição minha. E ambiciono conseguir a terceira estrela", sublinha o chef, sem rodeios, no meio de entrevistas e clientes que o felicitam e até a cozinha visitam.
Na véspera, no sul de Espanha, Rui Paula tinha sido menos incisivo com as palavras. A emoção embargou-lhe a voz. E o raciocínio. “Tinha pensado em dizer algumas coisas e não consegui, precisamente porque me emocionei”, conta o chef, enquanto pede um café e recorda o que lhe passou pela cabeça na noite anterior. “Queria dizer que somos um país muito bom, que temos uma cozinha muito boa. Queria falar um pouco de nós, nós Portugal, do nosso mar. Aproveitar aquele palco para chamar um pouco a atenção para isso.”
O chef costuma dizer que a principal inspiração dele são as memórias. Mas o que passou pouco interessa agora. Até porque o caminho até aqui começou muito lá atrás, num restaurante considerado pela crítica uma “pérola incrustada no coração do Douro” chamado Cêpa Torta, em Alijó, onde tem raízes familiares.
Se as memórias são a inspiração, de onde vem a energia? Responde: “Olhe, de prémios como este. Mas no dia-a-dia vem sobretudo dos clientes. São eles que nos transmitem essa energia, que é tão importante.” É Rui Paula o chef, ou Rui Paula o empresário? O pensamento dele está “sempre na comida”, garante. Mas o cliente merece igual dedicação. "Desde o início, sempre dei muita atenção ao cliente. Invisto muito tempo neles. Há quem insista dizer que passa o tempo na cozinha. Eu tenho de saber quem está na sala. E mesmo um chef duas estrelas Michelin tem de estar com os clientes. Não vai é chateá-los. Mas tem de os visitar no fim da refeição.”
A Casa de Chá é o quarto projecto empresarial em que arriscou. Depois do Cêpa Torta, do DOC, do DOP, pegou numa casa literalmente banhada pelo Atlântico e transformou-a num restaurante de nível mundial, segundo o guia Michelin. O chef Ferran Adrià, respeitado no mundo gastronómico, diz que é o restaurante mais bonito do mundo. Rui Paula e companhia aproveitam-no para levar o mar para a mesa. "Portugal é um país único, em peixe e marisco”, argumenta. “Somos um país com uma cozinha muito boa. Nós sabemos comer. E quando digo nós, penso do povo. Temos bom produto. É uma cozinha versátil.”
Ao que é mais óbvio, a equipa acrescenta-lhe vanguardas. Como um menu de degustação vegetariano. Inspirou-se em Camões para compor uma ementa com 21 cantos (pratos).
A criatividade é um processo de tentativa-erro, explica. “É um processo de estudo, de pesquisa e de experimentação”, sublinha. “Por vezes idealizamos uma coisa, mas na prática não resulta. E temos de começar tudo de novo”. Há um prato na ementa que o chef considera “genial”, a Lula Chanel. Demorou quatro meses a ser parido. Nunca mais saiu da lista. “É um prato mesmo bonito, que chama a atenção, que tem sabor também. E quando são pratos que marcam, e custa tanto chegar a eles, por que é que os vamos tirar? Qual é o problema em ter sete ou oito pratos fixos?”
O chef promete que não vai mexer nos preços, agora que tem uma segunda estrela. Comer ali não é para todas as carteiras (120 a 160 euros). Mas o cenário é tão exclusivo que deveria ser de todos. O que mudará daqui para a frente? “O nível de responsabilidade é maior. Teremos mais clientes e mais exigentes. Mas podemos estar descansados, temos um serviço bom, uma boa garrafeira, comida consistente, o conceito dos peixes e dos mariscos bem definidos. O que vamos fazer é afinar ainda mais, vamos dar mais surpresas na sala”, afiança.
Na mente do anfitrião, o reconhecimento mundial que agora chegou não marca propriamente um momento de viragem. Até porque “o melhor caminho para chegar à terceira estrela é trabalhar muito bem a segunda”. “Não há muito mais a fazer. Talvez abrir uma garrafa a fogo todos os dias, fazer um prato ou outro mais elaborado. Vamos continuar a ser quem somos”, prossegue.
A chave desse novo objectivo é responder a uma pergunta, que nasceu na cabeça de Rui Paula, a partir de uma conversa que o chef teve certo dia com um inspector do guia Michelin. “Os clientes de restaurantes com três estrelas poderão ser milionários. Se têm aviões, é provável que tenham um chef particular em casa. E luxo em casa, também. O que é que um milionário poderá não ter em casa? É nisto que vamos ter de pensar.”
A resposta será “uma experiência que não consegue ter em casa, que não pode ter só porque tem dinheiro e que só conseguirá ter aqui”, prossegue Rui Paula. “Esta casa é muito bonita, em termos arquitectónicos. Respira beleza por todo o lado. O lugar, em cima das rochas, é maravilhoso. Portanto, já temos isso, agora temos de surpreender o futuro cliente no serviço, na história que vamos contar através de um prato.”
E o que falta para Portugal, que tem diversos restaurantes com duas estrelas mas ainda não tem um com três? Rui Paula diz compreender que esse nível de reconhecimento ainda não tenha chegado a solo nacional. “Eu compreendo que talvez não queiram dar três estrelas a muitos restaurantes. Se o fizessem, estariam a banalizar [esse reconhecimento]. Percebi nesta gala, e quero acreditar, que se calhar estão à espera do momento certo. Cada vez temos mais restaurantes com uma e com duas estrelas. O nosso momento três estrelas há-de chegar inevitavelmente a Portugal. E está a chegar.”