Associações dizem que modelo agrícola em Alqueva está descontrolado e exigem uma auditoria
Mais de cinco mil hectares de áreas agro-silvo-pastoris foram invadidos por culturas intensivas em apenas três concelhos do distrito de Beja. Já se plantam oliveiras em zonas de montado.
Em 1953, Manuel Gomes Guerreiro, engenheiro silvicultor que integrou as comissões instaladoras da Universidade de Évora e Universidade Nova de Lisboa, vincava num dos seus escritos publicados naquele ano: “Fomos longe demais, rompemos o equilíbrio natural, expusemos o solo aos ardores e mudanças bruscas do clima, degradámos a flora e o solo, criámos condições para a desertificação do território” alentejano. Passados 66 anos, a Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável e o Movimento Alentejo Vivo (MAV) uniram esforços para interpretar o impacto social e ambiental associado ao incremento e a expansão do sistema de rega do Alqueva e áreas adjacentes. E as conclusões a que chegam comprovam o alerta deixado por Gomes Guerreiro.
O modelo agrícola predominante está a conduzir “à sua insustentabilidade”, advertem as duas organizações, em comunicado, depois de concluírem que se observa “descontrolo na instalação das explorações agrícolas na área de influência de Alqueva”, focando a necessidade de se proceder a “uma auditoria ao empreendimento”.
No levantamento realizado ao longo dos últimos três meses, as duas organizações destacam a “violação” de vários Planos Directores Municipais (PDM) e a “ocupação ilegal de mais de 5.000 hectares”, fora dos blocos de rega, em apenas três concelhos. Em Beja foram instaladas culturas intensivas de regadio numa área superior a 2.500 hectares, no concelho de Serpa ultrapassa os 2.000 hectares e em Ferreira do Alentejo aproxima-se dos 1.000 hectares.
As infracções aos documentos de ordenamento “estendem-se um pouco por todos os outros concelhos envolventes” aos já referidos, salientou ao PÚBLICO José Paulo Martins, membro da Zero que participou no levantamento efectuado. Gera também muita preocupação a “destruição de várias manchas de montado com maior ou menor densidade”, umas dentro e outras fora dos perímetros de rega e em áreas onde “é proibida a reconversão” cultural. Está a tornar-se recorrente a ocupação de manchas de montado com fileiras de olival superintensivo.
No que respeita à biodiversidade, prossegue o elemento da Zero, assiste-se à “destruição de bosquetes, montado, vegetação dos taludes, galerias ribeirinhas, charcos temporários mediterrânicos”, espaços de refúgio para muitas espécies de flora e fauna.
Os “riscos biológicos e económicos associados à aposta em monoculturas”, bem como as disponibilidades de água no futuro, estão a impor “a discussão urgente do modelo agrícola dominante em Alqueva”, realça José Paulo Martins.
Na observação efectuada, sobretudo nos concelhos de Beja, Serpa e Ferreira do Alentejo, a Zero e o MAV detectaram várias situações anómalas que se replicam de modo generalizado, destacando as técnicas aplicadas na instalação dos chamados camalhões que, para além de rasgarem o terreno em profundidade, são muitas vezes “orientados no sentido dos declives”. A intensa mobilização das terras constitui um risco elevado num território onde a desertificação dos solos é, há décadas, uma das principais preocupações. “Não entendemos como à conta de ganhos a curto prazo podemos estar a colocar em causa a fertilidade destes solos a longo prazo”, observa o elemento da Zero.
Também as linhas de água “estão a ser sujeitas a intervenções abusivas” com a sua rectificação e aprofundamento e, em vários casos, assiste-se a desvios nos seus cursos e à destruição das galerias ripícolas e mesmo à aplicação de herbicidas nas margens e leitos. Em algumas áreas de cabeceira, as linhas de escoamento “são simplesmente obliteradas e terraplanadas”.
Com o anúncio da instalação de novos blocos de rega da 2ª fase do Empreendimento de Fins Múltiplos do Alqueva, que virá a acrescer em mais 48.000 hectares a área a irrigar, assiste-se à plantação de novas culturas “antes de ser aprovada a sua implementação” quando as futuras áreas a irrigar até final de 2023 “ainda estão em processo de Avaliação de Impacte Ambiental (AIA)”, critica José Paulo Martins.
“Não se pode nem se deve deixar aos mercados e aos promotores/investidores, só por si, o poder de tomar as decisões quanto às opções a tomar”, assinala o comunicado da Zero, exigindo ao Estado uma maior capacidade de intervenção “na regulação e na fiscalização eficaz do modo como a utilização dos recursos está a ser efectuada”. Trata-se da maior obra de regadio,alguma vez instalada em Portugal, “onde foi investido dinheiro público para suportar práticas agrícolas que estão a ser subsidiadas”, acrescenta o documento.
“Antes que a situação se agrave”, a Zero exige a imediata intervenção da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região do Alentejo (CCDRA) e da Inspecção Geral do Ambiente, do Mar, da Agricultura, do Ordenamento do Território (IGAMAOT) para que sejam “cumpridos os preceitos previstos nos diversos instrumentos de gestão territorial em vigor”.
A Zero vai solicitar a realização de uma “auditoria urgente” à forma como todo o processo de instalação dos perímetros de rega tem decorrido para se saber “quem falhou e porque falhou, para apurar responsabilidades e corrigir o que ainda for possível corrigir”.
A Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva (EDIA) tem também expressado as suas preocupações para os riscos da “intensificação monocultural”. No Estudo de Impacto Ambiental (EIA) que mandou elaborar para o novo bloco de rega da Vidigueira, é reconhecida a possibilidade de poderem vir a “aumentar os riscos de esgotamento do recurso solo, com a consequente limitação da viabilidade no médio/longo prazo da exploração”. A alternativa passa pela “qualificação e formação profissional de agricultores e a adopção de esquemas de produção com preocupações agro-ecológicas e direccionados para a diversificação de culturas e técnicas” agrícolas, sugere o EIA.