MNAA prepara-se para duas intervenções “das que se fazem no máximo uma vez em cada século”

Daqui a uns anos o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) poderá mostrar aos seus visitantes uns Painéis de S. Vicente mais próximos dos “verdadeiros painéis, daqueles que foram pintados por Nuno Gonçalves”. Esta terça-feira foi assinado um protocolo mecenático entre a Fundação Millennium BCP e o museu que permitirá o restauro desta obra e também de um conjunto de esculturas da oficina Della Robbia.

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Assinatura do protocolo entre a Fundação Millenium BCP e o Museu Nacional de Arte Antiga para o restauro dos Painéis de São Vicente,Assinatura do protocolo entre a Fundação Millenium BCP e o Museu Nacional de Arte Antiga para o restauro dos Painéis de São Vicente Rui Gaudêncio,Rui Gaudêncio
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Joaquim Caetano mostra a Graça Fonseca, a Paula Silva e ao embaixador António Monteiro as fotografias de alta definição dos Painéis de São Vicente,Joaquim Caetano mostra a Graça Fonseca, a Paula Silva e ao embaixador António Monteiro as fotografias de alta definição dos Painéis de São Vicente Rui Gaudêncio,Rui Gaudêncio
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Rui Gaudêncio

Numa das salas do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), tendo por cenário os seis painéis de Nuno Gonçalves, foi assinado esta terça-feira de manhã um protocolo mecenático entre a Fundação Millennium BCP e o MNAA, para o restauro da mais famosa pintura portuguesa que o museu lisboeta tem à sua guarda, e que se iniciará na próxima Primavera. O protocolo que prevê um apoio financeiro de 225 mil euros durante três anos foi contratado com a tutela, na presença da ministra da Cultura, como prevê a nova Lei da Autonomia dos Museus. Permitirá ao MNAA possuir em permanência, pela primeira vez, uma equipa de quatro conservadores na área do restauro.

O protocolo, que foi anunciado em Agosto pelo novo director do museu, Joaquim Caetano, numa entrevista ao PÚBLICO, prevê igualmente o restauro do conjunto de 11 esculturas em terracota vidrada da oficina renascentista dos Della Robbia, que também pertencem ao museu. Na cerimónia, em que além de Graça Fonseca participaram Paula Araújo Silva, da Direcção-Geral do Património (DGPC), o embaixador António Monteiro e Fátima Dias, em representação da Fundação Millennium BCP, e José Blanco, do Grupo dos Amigos do MNAA, o director considerou tratar-se de “dois desafios de enorme responsabilidade e duas intervenções das que se fazem no máximo uma vez em cada século”.

Ao contemplarmos os seis painéis de S. Vicente datados de 1470, não é perceptível a olho nu que estejam a precisar de uma grande intervenção de conservação e restauro. Foi também essa primeira impressão que teve o presidente da Fundação Millennium BCP, o embaixador António Monteiro, antes de lhe terem explicado o porquê da necessidade deste restauro. Mas quando nos dirigimos para a Mesa Interpretativa dos Painéis, que desde Maio passado o museu disponibiliza ao lado da pintura, com materiais fotográficos onde se vêem pormenores da obra aumentados, fica-se com uma ideia diferente.

Parte das imagens disponibilizadas vêm da intervenção de 1994, quando houve um projecto de estudo histórico e técnico dos painéis que ficou a meio; outras são radiografias feitas nos últimos dois anos, e as fotografias de alta definição foram feitas no final do ano passado e no princípio deste. Quando se reuniu esta última documentação fotográfica, notou-se que o estado de conservação do restauro que tinha sido feito nesta pintura há 110 anos não era idêntico ao estado de conservação da pintura original. Verificou-se que a pintura original “estava já sedimentada pelos cinco séculos que tinha em cima”, como explicou esta terça-feira o director do museu aos jornalistas, enquanto nas zonas restauradas apareciam “alterações na cor e no tipo da matéria” que se tornavam muito visíveis quando observadas em pormenor.

 “Esse restauro grande que, de alguma forma, marcou o início do restauro moderno em Portugal, feito por Luciano Freire (1864-1934), foi realizado com os meios que ele podia ter na altura (1909-1910) que não eram muitos”, acrescentou Joaquim Caetano, especificando que eram “basicamente os seus olhos, o seu cuidado e o seu talento de mãos para perceber a pintura”. Por exemplo, um dos homens representados no quadro de perfil tem um barrete preto, que na reflectografia se vê que é ondulado, tem zonas de luz e zonas de sombra. “Dá ideia que ali Luciano Freire não conseguiu perceber o que lá estava e pintou o barrete de preto. Tal como acontece com os fundos que em alguns sítios são muito pretos, mas de facto são verde-escuro.”

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Na intervenção que Luciano Freire fez nos Painéis de S. Vicente constatou que havia vários níveis de repintes. “Um dos que ele tirou completamente, que seria do século XVIII, remodelava as figuras quase todas. Mas fez notar também que havia intervenções mais antigas onde ele não tinha meios para mexer”, explicou o director do MNAA. “Agora temos esses meios. E vai ser caso a caso que vamos ver até onde podemos ir, com segurança, numa obra que toda a gente conhece.” Os técnicos podem actuar hoje em áreas em que o Luciano Freire “teve, e ainda bem que teve, alguma prudência em avançar”. E a maior segurança que a tecnologia nos dá actualmente permitirá ao museu, daqui a alguns anos, mostrar “uns painéis mais próximos dos verdadeiros painéis, daqueles que foram pintados por Nuno Gonçalves”.

A intervenção de restauro, cuja estimativa orçamental não chegará a meio milhão de euros, será realizada em áreas muito pequenas, embora em muitas. “Esta pintura não é como outras que o museu tem, não está num estado de degradação imenso, mas precisa de intervenções muito pontuais que depois se vão reflectir na imagem geral da obra”. E as actuais molduras dos seis painéis deverão também ser alteradas, pois tapam oito centímetros desta pintura do século XV. 

 Do que já há a certeza é que se irá intervir sobre as alterações cromáticas da própria intervenção de Luciano Freire. Mas depois há áreas mais obscuras em que essa tomada de decisão será muito difícil. Por exemplo, explicou Joaquim Caetano: “[Saber] se em áreas onde Luciano Freire não fez uma intervenção muito profunda se o que existe por baixo ainda é algo ao qual nos podemos agarrar para levar a intervenção mais fundo. Ou se a parte original está de tal forma degradada que é melhor deixar uma intervenção antiga. Não queremos de modo nenhum que a pintura se resuma à pintura original, porque isso iria obviamente destruir completamente a imagem que temos dos painéis. E isso não pode ser feito.”

O restauro marcará o ritmo

A direcção do MNAA “gostava muito” que o restauro pudesse ser feito in loco. Não sabem ainda se isso é possível. “O museu não tem uma grande área de exposição na pintura portuguesa. Fechar esta sala mesmo com vidros permitiria vermos os painéis, mas teríamos de tirar tudo quanto está aqui. É algo que ainda estamos a sopesar. De qualquer maneira, o restauro será sempre feito no museu”, afirmou Caetano. “E se as pinturas tiverem de sair daqui, sairão em quatro fases: dois painéis pequenos, depois um grande, depois o outro painel grande e, finalmente, outros dois pequenos. Tentaremos que toda a intervenção seja documentada e rapidamente disponibilizada através da Internet, por meio de filmagens e de fotografias. Temos a perfeita consciência de que esta obra se tornou um símbolo da arte portuguesa e do país e deste museu também.” Embora o director não se queira comprometer com datas, acredita que dentro de três anos o essencial do trabalho estará feito. Uma coisa é certa: será “o próprio restauro a marcar o ritmo”. Não se apressarão os trabalhos para se cumprirem “calendários comerciais ou políticos”.

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Uma das esculturas da oficina renascentista dos Della Robbia Paulo Alexandrino/MNAA

O restauro dos painéis, cujo conjunto é pintado a óleo e têmpera sobre madeira de carvalho, vai também permitir ao museu “a criação de um background técnico” e a compra de máquinas de radiografia, de reflectografia, de boa fotografia. “Interessa-nos comprar alguns destes equipamentos, pois farão com que este projecto seja também estruturante para um futuro núcleo mais fortalecido de conservação e restauro no museu”, explicou o director.

Quatro conservadores de pintura em permanência

No projecto, duas pessoas irão juntar-se em permanência às duas conservadoras de pintura da equipa do MNAA. “Apesar de manifestamente insuficiente para as suas colecções e incomparavelmente menor do que é norma em museus similares, o MNAA possui pela primeira vez uma pequena equipa de quatro conservadores na área do restauro, o que é uma situação nova e que fornece a base para os projectos nesta área”, anunciou o director. Por isso estarão quatro pessoas a trabalhar directamente com os painéis, começando já, numa fase que se deve prolongar até Março, a fazer o diagnóstico dos painéis e a cartografia dos pontos onde será necessária intervenção. Nessa altura deverá ser feita a primeira reunião com o grupo alargado de consultores estrangeiros e portugueses que se vão juntar à equipa, em que se vai discutir a definição de uma estratégia e do modus operandi.

A intervenção na obra terá como consultores parte da equipa que coordenou recentemente o grande restauro do Retábulo do Cordeiro Místico de Van Eyck, incluindo Maximiliaan Martens, da Universidade de Gent, a conservadora Maryan Ainsworth do Metropolitan Museum of Art e o restaurador Michael Gallagher, subdirector do mesmo museu nova-iorquino para a área do restauro. O MNAA está também em contacto com outros museus e com o Getty Institute, para conseguir novos apoios. Os consultores estarão em permanente contacto com a equipa do museu e virão a Portugal várias vezes por ano.  

Por sua vez, a intervenção na colecção de escultura italiana da oficina renascentista dos Della Robbia tem como “ponto de partida o restauro, neste momento a terminar, do medalhão de Dario que foi emprestado pelo museu para a exposição Verrocchio, mestre de Leonardo, em Florença, e que depois de exposto foi cuidadosamente tratado na oficina Studio Techne de Florença”, disse Joaquim Caetano. “São os mesmos técnicos italianos, os mais reputados nesta área, que orientarão e executarão em colaboração com o MNAA o trabalho de restauro, numa acção cuja componente formativa se poderá estender a técnicos de outros museus e laboratórios da DGPC.”

Não é a primeira vez que a Fundação Millennium BCP é mecenas e parceira do MNAA; foi-o também, por exemplo, durante a campanha de crowdfunding para a aquisição da pintura Adoração dos Magos, de Domingos Sequeira.

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