A morna já era património do mundo. Agora é, para a eternidade, Património da Humanidade. Nos Terra é feliz!
Não sei se o mundo já agradeceu o que os cabo-verdianos nos deram ao longo da história. Sei que o meu país ainda não o fez. Fica, neste breve texto, com a Lua nha testemunha, um agradecimento por este legado que, agora, já é, para a eternidade, património das gerações futuras.
Conheci Cabo Verde num chuvoso sábado de novembro, à tarde. À minha volta todos eram cabo-verdianos, cheirava a comida das ilhas e todos falavam crioulo. O Cabo Verde que eu conheci ficava no Bairro 6 de Maio, era escuro mas não era silencioso. Numa das casas – a cuja porta bati para fazer um inquérito para um projeto científico – estava uma velhinha que vendia chupa-chupas de açúcar – pirulitos. Contou-me num crioulo fechado sobre si mesmo que tinha ido para Sul, num porão de um navio, tendo passado muitos anos em S. Tomé antes de vir para Lisboa. Recebeu-me sem me conhecer e falou-me como se tivéssemos algo em comum. E tínhamos, só que eu ainda não sabia. Nos meses que se seguiram visitei outras ilhas: Azinhaga dos Besouros, Pedreira dos Húngaros, Cova da Moura, Quinta do Mocho... Em todas elas encontrei o que nem sabia existir: uma afabilidade, atenção ao outro, gentileza, humildade e, muitas vezes, pobreza. Cabo Verde para mim eram estas ilhas e as gentes que as habitavam.
Algum tempo depois fui ao arquipélago de Sahel. Vi as mesmas gentes, o mesmo povo. Senti a mesma abertura e fui recebido da mesma maneira, com gentileza, humildade e generosidade. Na ilha do Fogo conheci uma outra velhinha que jogava uril enquanto fumava o seu cachimbo. Aprendi que o pensamento matemático abstrato pode coexistir com o analfabetismo de quem nunca teve oportunidade de ir à escola. E, um dia, descobri a melancolia numa morna. A injustiça na história de Blimunde. A alegria e o ritmo de um batuque. A genialidade de um Travadinha. A beleza de um Chiquinho. A tristeza triste da sodade.
Cabo Verde é um petit pays, como o cantava Cizé, mas uma nação global. Cabo Verde é um bairro de Roterdão, um café de New Bedford, um recanto de Paris, uma praça de Roma. Cabo Verde é tanto Lisboa como Lisboa é Cabo Verde. Hoje acordámos sabendo que a morna vai ser património mundial da humanidade. A melancolia triste de uma canção nacional vai, hoje e no futuro, ser a alegria contida de uma nação global.
É justo homenagear Eugénio Tavares que, numa nação analfabeta, entre os séculos XIX e XX, inventou na oralidade cantada um discurso anti-colonial. As mornas em crioulo tinham (têm) uma comunicabilidade própria que as enche de sentido e mensagem. É justo homenagear a Cesária Évora, que, na sua genialidade pessoal, internacionalizou a pureza de uma sonoridade endémica de Cabo Verde. É justo homenagear Manuel d’ Novas que criou Lamento D'um Emigrante que, cantado por Bana, se tornou um gigante hino para os que vivem na terra longe. É justo homenagear B. Leza, que tornou a morna de tal forma melódica que nos toca lá no fundo da alma. É justo agradecer a Ildo Lobo pela genialidade com que trouxe a sua voz e transformou poemas em hinos.
Não cabem nesta página todos os que tornaram a morna património do mundo. Não cabem num pequeno país todos os génios que sem escola mudaram a música no mundo. Não sei se o mundo já agradeceu o que os cabo-verdianos nos deram ao longo da história. Sei que o meu país ainda não o fez. Fica, neste breve texto, com a Lua nha testemunha, um agradecimento por este legado que, agora, já é, para a eternidade, património das gerações futuras.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico