Muro de Berlim: 30 anos depois, a frágil leveza da liberdade
Não faz sentido continuar a debater se o que deve prevalecer é a liberdade ou a igualdade. O que a queda do Muro e os últimos 30 anos nos ensinam é que sem liberdade não há igualdade, e que sem igualdade a liberdade é frágil e vulnerável.
Trinta anos depois, a memória do Muro de Berlim clama contra os muros que é preciso derrubar para construir um mundo mais fraterno que, na euforia da surpreendente festa do 9 de Novembro de 1989, parecia estar ao nosso alcance.
As revoluções democráticas que se seguiram eram de “veludo” — como chamou Havel à revolução checa —, não havia mais tanques na rua a pisarem o sangue dos seus mártires. Os progressos em termos de direitos políticos e sociais “na Europa raptada”, de que falava Kundera, estão aí para atestar que a Utopia de uma Europa unida e democrática é realizável.
Com o medo do holocausto nuclear esconjurado, motivação primeira de Gorbatchov, a paz tornava-se possível e com ela uma década de cooperação internacional sem precedentes, assente na revitalização do multilateralismo, na integração regional e em progressos significativos na proteção dos direitos fundamentais de que a instituição do Tribunal Penal Internacional é um exemplo notável.
Nos anos 90, a década de todas as esperanças, assistimos ao fim do Apartheid, à independência de Timor, à consolidação da democracia na América Latina e a um vasto movimento de reformas económicas na Ásia e, com elas, à saída da miséria de centenas de milhões de pessoas.
A democracia liberal teria triunfado para sempre e, como diria apressadamente Fukuyama, era o fim da História. Pouca atenção se dava aos que ficavam para trás, àqueles para quem a festa tinha um gosto amargo.
Dos Balcãs, das valas comuns de Srebrenica, chegou o trágico alerta de que os anúncios de que não havia alternativa às democracias liberais eram, no mínimo, prematuros. O nacionalismo identitário estava de regresso à Europa, num discurso demagógico sobre passados quiméricos, feitos de ressentimentos históricos, e iria alimentar-se, com a crise de 2008, do descontentamento com a desigualdade social.
No acelerar da História foi negligenciado que triunfara com a implosão da União Soviética, não era apenas a liberdade, mas também uma visão da sociedade, para quem o lucro e o consumo são o bem supremo.
O triunfalismo dos vencedores da Guerra Fria, livres do espectro do comunismo, sustentava-se na convicção de que já nada se opunha à globalização neoliberal, que os riscos de revolta social, que tinham legitimado a social-democracia, ruíram como as pedras do muro que colecionavam.
A receita proposta, a do Consenso de Washington, iria revelar-se mortífera para a transição de uma economia estatal para uma economia capitalista.
A transição democrática na Rússia foi a primeira vítima. O capitalismo tinha de ser restaurado “já” e os que ficavam para trás eram os que não tinham mérito suficiente, os que não sabiam adaptar-se aos novos tempos em que o sucesso económico é o barómetro da felicidade.
Quando, em 1991, nos anos de Ieltsin e da terapia de choque de Jeffrey Sachs, visitei Moscovo, constatei como a desregulação brutal da economia tinha deixado muitos na fome e vi formar-se, com privatizações selvagens, a oligarquia que hoje, com Putin, detém o poder. Em Moscovo, o maior McDonald’s do mundo, inaugurado em 1990 com pompa, fazia as vezes da bandeira soviética içada em Berlim, em 1945.
Quando lemos que o nacionalismo está de volta à Alemanha de Leste, não podemos deixar de lembrar as palavras prudentes de François Mitterrand ao seu amigo Khol sobre os perigos de acelerar a absorção da RDA pela RFA.
Contudo, poderia ter sido outro o caminho seguido, poderia ter vingado o modelo então prevalecente na Europa Ocidental de combinação de liberdade com igualdade e justiça social. O modelo que tornara as Comunidades Europeias o horizonte a que aspiravam os que se libertavam do totalitarismo.
Com a derrota do modelo comunista tornava-se claro que a proposta de que era possível garantir a igualdade sem liberdade não passava de um embuste. O que era preciso garantir agora era que a liberdade significava igualdade e justiça social.
Se a liberdade trouxe, desde a queda do Muro, enormes progressos no domínio da igualdade dos direitos, as desigualdades sociais, pelo contrário, agravaram-se.
Hoje, políticos extremistas fazem-se arautos da desigualdade. É assim nos Estados Unidos, com a defesa por Trump da supremacia branca e o seu ataque aos direitos das minorias, é assim no Brasil, com a manifestação por Bolsonaro do seu ódio às mulheres e aos Índios, é assim na Europa, nos ataques aos direitos dos migrantes e aos muçulmanos. Veja-se aqui mesmo ao nosso lado o discurso descomplexado e nauseabundo do Vox e como o centro direita espanhol o aceita nos seus cálculos políticos.
Não faz sentido continuar a debater se o que deve prevalecer é a liberdade ou a igualdade. O que a queda do Muro e os últimos 30 anos nos ensinam é que sem liberdade não há igualdade, e que sem igualdade a liberdade é frágil e vulnerável.
A União Europeia ainda é a nossa maior esperança, mas tem que assumir que a Europa política só pode ser uma comunidade de valores, inscrita, como propunha Edgar Morin, na Conferência de Lisboa do IEEI de 1993, numa “comunidade de destino planetário”.
Co-fundador do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI)