Para quem fala Joacine?
Parafraseando Joacine, que pode “ser gaga na voz, mas não é gaga nas ideias”, o que vemos é quase um ajuste de contas com a história de Portugal transformada em direito político, uma desonestidade política e intelectual que demonstra que nas ideias não tem gaguez, mas miopia.
Portugal tem assistido ao fenómeno Joacine entre o espanto e a indignação, entre a comiseração e a inquietude. Afinal, qual foi o objectivo do Livre ao escolher como cabeça de lista a agora deputada Joacine Katar Moreira? Terão as propostas do partido menos importância que os seus protagonistas? O que os leva a expor de tal forma a disfemia profunda de Joacine, vulgarmente conhecida como gaguez, criando momentos confrangedores de uma violência impressionante para a própria e para quem ouve?
Se estas questões foram tema de conversas, de acusações e mesmo infâmias durante a campanha eleitoral, onde houve oportunidade ao esclarecimento e mesmo à sensibilização para a sua condição, a estreia na Assembleia da República foi tudo menos natural. Desde logo com a entrada disruptiva quanto ao vestuário, não da deputada que assumia funções de representação eleitoral, mas, imagine-se, do seu assessor, que entendeu aparecer de saias. Afirmou depois, porque se tornou no tema da semana, que acha normal, que não esperava tamanha comoção e reacção generalizada, para logo a seguir revelar sem querer o propósito, uma vez que confidenciou que havia abordado essa questão com a própria Joacine, temendo que a pudesse ensombrar. Aproveitaram para criar a ideia de que todos estamos errados e somos intolerantes, ao quebrarem de forma deliberada o protocolo da Assembleia.
Misturam assuntos a maior velocidade que os verbalizam. Lutam contra o sistema, mas vão viver do sistema, acusam o país de racista, o mesmo país que lhes dá a oportunidade de ter uma candidata negra a deputada, e que é licenciada, mestre e doutorada numa universidade pública, mesmo tendo nascido na Guiné não colonial. A agora deputada que se afirma feminista radical, e que radicalmente defende a mulher negra, para depois surgir com um assessor homem, branco e vestido de saias a carregar a carteira da deputada sempre em posição submissa. Que statement é este? Não será isto então gaguez ideológica?
É regra elementar da política que se apresentem as ideias e as posições de uma forma estruturada e compreensível, mas ficamos sem saber quais as reais intenções para além das encenações. Poderíamos dizer que são questões meramente ideológicas ou de protesto, mas não é demais quererem impor de uma só vez os ideais de minorias, a recuperação do racismo e anti-colonialismo como bandeira, sem nenhum tempo para que se possa sequer processar as suas perspectivas?
E quando reagimos, naturalmente, ao imprevisível, somos acusados de intolerantes, antiquados e racistas. Uma tal casta de gente de uma intelectualidade sobranceira e arrogante apresenta mais desonestidade intelectual do que saber construtivo. Trabalha no que há de mais básico na nossa condição humana, tentando expor as nossas reacções de instinto ao crivo da sua polícia dos valores, explorando-as e tentando manipular a opinião pública vitimizando-se.
Na mesma sequência de acontecimentos: o assessor de saias que acompanha a deputada, a estreia nos discursos na câmara dos deputados com episódios de gaguez profunda e confrangedora; Joacine fotografa-se em frente a um dos quadros expostos no salão nobre da Assembleia da República, publicando depois a imagem com o seguinte comentário: “contrariando a lógica colonial e subalternizarão exposta e institucionalizada do colonialismo e da Escravatura neste espaço” (letra maiúscula da responsabilidade da própria).
Sendo doutorada em História, a sua miopia ideológica tolheu-lhe a racionalidade e revelou a sua profunda ignorância e a sua desonestidade política e intelectual, e creio ter revelado os verdadeiros perigos dos partidos fofinhos mas populistas, coitadistas mas radicais de esquerda. A sanha é de tal monta que bastou um dia para revelar toda a sua carta de intenções.
E se não houvesse argumento suficiente com a mediatização do episódio das saias, ou a recuperação do racismo chamando a si o pioneirismo eleitoral da mulher negra, quando sabemos que de há muito a Assembleia da República excluiu a exclusão com base na raça (e não é preciso recordar que Portugal foi pioneiro na abolição da escravatura), no meio de tanta arrogância intelectual revelou a sua ignorância, uma vez que o quadro que usou para, uma vez mais, acordar os fantasmas da escravatura no seu ajuste de contas com a história é uma pintura que representa a “recepção a Vasco da Gama pelo Samorim de Calecute” no ano de 1498, num acto de deferência e cortesia, que Joacine confunde com subalternidade, e um momento particularmente importante por ser o momento que dá início à globalização que o Livre tanto aprecia e defende.
Parafraseando Joacine, que pode “ser gaga na voz, mas não é gaga nas ideias”, o que vemos é quase um ajuste de contas com a história de Portugal transformada em direito político, uma desonestidade política e intelectual que demonstra que nas ideias não tem gaguez, mas miopia.
Politicamente muito cansativo, muito desgastante, muito redutor e, como diz Daniel Oliveira, “tudo muito pessoal".