Homem rico, homem pobre: as respostas de Sócrates ao Ministério Público
Ex-primeiro-ministro sempre negou ter recebido luvas de Ricardo Salgado, que diz conhecer mal. Os vultuosos “empréstimos” do amigo Carlos Santos Silva, justifica-os com a amizade mas também com a admiração que o empresário sentiria pela sua pessoa. “Sempre vivi com a generosidade da minha mãe, que lá ia dando umas massas quando eu precisava”, afirmou no primeiro interrogatório judicial.
“Como é que o senhor vive agora, como é que o paga as suas despesas?”. Feita no final de uma entrevista pelo jornalista da RTP Vítor Gonçalves, a pergunta despertou a fúria do ex-primeiro-ministro José Sócrates: “Desculpe lá, mas o que é que o senhor tem a ver com isso? Isso é uma pergunta de um jornalista?”. Depois lá adiantou que o seu sustento vinha da pensão de ex-deputado. Quando o entrevistador lhe perguntou se não vivia com empréstimos do amigo Carlos Santos Silva, voltou a enfurecer-se: “Essa pergunta é uma afronta, é indigna de um jornalista”.
O episódio data de Outubro de 2017 e espelha bem a violência com que o antigo governante tem reagido a todos quantos tentaram encontrar uma lógica nas suas finanças nos últimos anos – fossem eles meros jornalistas ou representantes da justiça. É verdade que o Ministério Público não apresentou, até agora, provas irrefutáveis de que José Sócrates tenha sido mesmo corrompido quer pelo Grupo Espírito Santo de Ricardo Salgado quer pelo grupo Lena, ligado a Santos Silva. Mas como explicar então as férias de luxo, a roupa e os restaurantes caros, a estadia em Paris e tantos outros aspectos de uma vida mais do que desafogada e, sobretudo, muito acima dos rendimentos que declarou ter?
No primeiro interrogatório judicial a que foi submetido em Novembro de 2014, pouco depois de ter sido detido no aeroporto de Lisboa, o arguido fala quase como se subsistisse à custa da caridade alheia: “Eu sempre tive dificuldades financeiras. Nunca nunca tive contas a prazo, não tenho dinheiro de fortuna, tenho uma casa e um carro. Sempre vivi com a generosidade da minha mãe, que lá ia dando umas massas quando eu precisava”. Sem a agressividade que viria a revelar nos interrogatórios seguintes, fala também da generosidade de Santos Silva: “Devo dizer que é verdade, que de onde em onde me emprestava dinheiro, é mesmo assim, porque eu tenho pouco, e sei que ele é um homem de posses e, de vez em quando, pedia-lhe dinheiro (...) para fazer face às minhas necessidades mais prementes. Ainda não devolvi nada”.
Tanta generosidade porquê? Por respeito, por admiração, justifica José Sócrates, explicando que se trata de uma amizade fraternal que dura há 40 anos e acabou por se estender às respectivas famílias. Além do dinheiro, admite, o empresário da construção civil pagava-lhe estadias de férias a ele e a familiares. O antigo líder socialista diz ser perfeitamente normal este tipo de liberalidade e chega a perguntar aos procuradores se se recordam de que forma pagaram as suas férias nos últimos anos. Estes respondem que sim, que se lembram.
Para o Ministério Público, porém, as conversas cifradas que manteve várias vezes ao telefone e as recheadas contas de Carlos Santos Silva na Suíça constituem fortes indícios de que recebeu, através deste amigo mas também de outros, nada mais nada menos do que 34 milhões de luvas entre 2006 e 2015. Verba que terá servido para pagar quer várias adjudicações feitas pelo Estado ao grupo Lena – as obras nos estabelecimentos de ensino via Parque Escolar, o projecto do primeiro troço do TGV e até o negócio da venda de casas pré-fabricadas à Venezuela – quer, sobretudo, a defesa dos interesses do Grupo Espírito Santo enquanto accionista da Portugal Telecom com grandes privilégios. Se Ricardo Salgado perdesse o controlo da operadora de telecomunicações, gorar-se-iam vários dos negócios que a PT tinha entregue ao GES. De acordo com a acusação, Sócrates terá ainda recebido um quinhão do empréstimo concedido pela Caixa Geral de Depósitos ao empreendimento turístico de Vale do Lobo através de Armando Vara.
Sócrates tem negado tudo: “Passa pela cabeça que tivesse 23 milhões de euros escondidos e não possuísse um documento sequer que me permitisse aceder a esse dinheiro?!”. De facto, nunca foi nem titular nem beneficiário das contas de Santos Silva. Acontece que o beneficiário final de alguma delas é o seu primo José Paulo Pinto de Sousa. O ex-primeiro-ministro não vê nada de estranho nisso: “Santos Silva era sócio do Zé Paulo. É a única coisa que sei”.
E dispara outro argumento, que usou também numa entrevista à TVI: se fossem seus os milhões da Suíça por que razão teria contraído três empréstimos junto da Caixa Geral de Depósitos, como fez para ir estudar para Paris e levar um dos filhos consigo? Ao mesmo tempo, nega ter levado uma vida de luxo na capital francesa: “A vida faustosa é ir tirar um mestrado para Paris? Querer que os filhos acabem o liceu numa escola internacional? Onde é que está o luxo?”. Só que o Ministério Público descobriu que essa vida frugal incluiu, por exemplo, pagar 800 euros por uma noite num dos melhores hotéis da capital.
A acusação diz também que o ex-primeiro-ministro sustentou ou ajudou a sustentar várias mulheres. Desde logo uma emigrante que vivia na Suíça, Sandra Santos, que o arguido alega ter sido ajudada mas por Santos Santos e não por si, mas também a sua mãe, que um dia lhe ligou a queixar-se de estar “depenadinha”. Sócrates diz que a progenitora lhe doou cerca de 400 mil dos 600 mil que recebeu de Carlos Santos Silva quando lhe vendeu o apartamento que tinha no mesmo prédio do filho, na Rua Castilho, em Lisboa, em 2012. Mais um negócio do empresário amigo com um familiar seu no qual garante não existir nada de suspeito. Afinal, conclui, ele próprio conseguiu 675 mil euros pela sua fracção três anos mais tarde. De resto, parte desta verba, assegura, foi para começar a pagar a Santos Silva.
Mas não param por aqui as relações financeiras dos seus familiares com o empresário cujo dinheiro o Ministério Público diz ser afinal seu e não dele: engenheira ambiental de profissão, a ex-mulher de José Sócrates, Sofia Fava, foi contratada por avença por uma das empresas de Santos Silva para acompanhar projectos à razão de cinco mil euros mensais. “Achei normal que colaborasse com ele, o seu currículo fala por ela”, justifica o arguido, garantindo não conhecer detalhes desse contrato de trabalho.
Também arguida no processo, Sofia Fava é suspeita de ajudar a fazer chegar ao ex-companheiro algum do dinheiro proveniente das luvas que o antigo governante nega alguma vez ter recebido. “Nunca me relacionei com banqueiros. É falso que tenha tido uma relação de proximidade com Ricardo Salgado”, garantiu num dos interrogatórios o antigo chefe do Governo, apelando para a falta de lógica da imputação segundo a qual recebeu seis milhões para que a Caixa Geral de Depósitos, accionista da Portugal Telecom, votasse contra a oferta pública de aquisição (OPA) hostil da Sonae sobre a operadora de telecomunicações em 2006. “A OPA teria perecido na mesma” ainda que a CGD votasse favoravelmente, aponta o arguido. “Então o dr. Ricardo Salgado ia pagar-me uma fortuna por um voto de que não precisava???”. Para o Ministério Público, este argumento tem um problema: o banqueiro não sabia à partida se ia ou não necessitar dele, razão pela qual mais valia jogar pela certa. Sócrates nega igualmente ter tido algum tipo de proximidade com Zeinal Bava, CEO da PT.
O ex-primeiro-ministro nega também ter alguma vez interferido fosse em que concurso fosse, Parque Escolar e projecto do TGV incluídos. E recorda que foram muitas as empresas que levou ao estrangeiro em missões de diplomacia económica, tendo a Lena sido só mais uma. “Apenas soube na Venezuela que o grupo Lena estava no ramo das casas pré-fabricadas”, assegura.