Artistas entregam cartas a primeiro-ministro, Graça Fonseca promete “revisão crítica” do modelo de apoio às artes

Em causa está a insuficiente dotação financeira dos concursos de apoio às artes para o biénio 2020/2021, que deixaram de fora 75 candidaturas consideradas elegíveis pelos júris. Ministra da Cultura comprometeu-se esta sexta-feira a trabalhar em “soluções de curto prazo”.

Fotogaleria
Nenhum representante do primeiro-ministro recebeu os cerca de 30 artistas ANTÓNIO COTRIM/LUSA
Fotogaleria
ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Cerca de três dezenas de artistas entregaram esta tarde cartas de contestação dos resultados provisórios dos concursos de apoio às artes na residência oficial do primeiro-ministro, e apelaram ao diálogo entre o Governo e o sector, para se encontrar uma solução conjunta.

Eram perto de 30, mas representavam as centenas de artistas que têm vindo a protestar contra os resultados do programa de apoio sustentado para o biénio 2020/2021, divulgados no dia 11 de Outubro pela Direcção-Geral das Artes (DGArtes), que deixaram sem apoio 75 das 177 candidaturas consideradas pelos júris elegíveis. Tinham concorrido 196 estruturas, apenas 102 receberão financiamento. 

Além da exigência de um reforço na dotação dos concursos que estenda o financiamento público a todas as candidaturas elegíveis, os artistas exigem também a revisão do próprio modelo de apoio às artes lançado em 2017 e entretanto já reformulado, na sequência da sonora contestação de que foi alvo no ano passado, e a abertura de uma via de diálogo entre o Ministério da Cultura e o sector artístico.

Manifestando uma “profunda desilusão” com estes resultados, o actor Filipe Abreu foi um dos dinamizadores da iniciativa que deixou no Palácio de São Bento, ao cuidado do chefe do Governo, uma carta subscrita por 1131 pessoas, na qual se propõe, “como solução provisória até se encontrar um novo modelo melhor”, que “todas as estruturas consideradas elegíveis pelo júri externo sejam financiadas”. 

Questionado sobre uma possível proposta alternativa de modelo de apoio às artes que o sector tenha para apresentar, Filipe Abreu respondeu que “é um assunto complexíssimo que poderia ser discutido com técnicos da DGArtes e uma presença forte de representantes do sector”.

A produtora Tânia Guerreiro, que subscreveu uma das cartas a título individual mas representa duas estruturas artísticas (as Produções Independentes e a ORG.I.A – Organização, Investigação e Artes), partilha da mesma opinião: “Se nos receberem, se trabalharem de facto connosco, penso que vamos encontrar soluções com muita rapidez. Enquanto isso não acontecer vai haver muitos erros nos concursos, e o que exigimos, porque é um direito dos artistas e dos cidadãos, é que exista um trabalho sério para que o sector continue a crescer.”

Tânia Guerreiro, que viu a sua estrutura, a Produções Independentes, ficar sem acesso a financiamento, apesar de ter sido considerada elegível, alerta para o facto de as entidades que ficam de fora serem “muito relevantes” no panorama artístico português. E lembra que “existe um investimento da DGArtes e do Governo nestas entidades que se quebra de cada vez que há um resultado deste tipo”, apontando que esta é uma das fragilidades do actual modelo.

Agrupados dois a dois, os grupos foram entregando maços de cartas à vez na residência oficial do primeiro-ministro. Nenhum representante os recebeu, porém, e as cartas representativas de mais de 800 entidades, artistas e espectadores tiveram de ser deixadas ao funcionário da recepção. Uma circunstância que parece não preocupar nem desanimar os contestatários, porque, como diz Tânia Guerreiro, o “importante é o acto simbólico da entrega e assegurar uma resposta”.

“O que queremos é abrir esta porta de diálogo e de resolução, e rápido, porque estas estruturas estão numa situação muito precária e não sabem o que vão fazer nos próximos tempos, ou no próximo ano, ou a partir de agora. E não são só as estruturas que ficam mal, é uma data de artistas que colaboram com essas estruturas”. É o caso das Produções Independentes, que vão ter de fechar por falta de financiamento, apesar de a sua candidatura ter sido considerada elegível.

Os próprios júris dos concursos sublinharam, de resto, a insuficiência dos montantes disponíveis. O júri da área do Teatro chegou mesmo a pedir, numa carta endereçada à ministra da Cultura Graça Fonseca, entretanto reconduzida, um reforço “sólido” das dotações, confessando o “extremo desconforto” por as suas deliberações “não encontrarem correspondência financeira”: “Verificada esta disparidade entre o número de concorrentes admitidos a concurso, elegíveis para apoio, e os montantes financeiros a distribuir [...], vimos apelar à sua sensibilidade e compreensão, para que se encontre uma solução que resgate as expectativas dos candidatos [...]. Entendemos que um reforço, tão sólido quanto possível, da dotação [...] seria a melhor forma de pôr fim a esta profunda discrepância.”

As preocupações do júri do Teatro encontraram paralelo nas manifestadas pelos júris de Artes Visuais (oito candidaturas elegíveis, três apoiadas), Circo Contemporâneo e Artes de Rua (quatro elegíveis, duas apoiadas), Cruzamento Disciplinares (19 candidaturas elegíveis, 13 apoiadas), Dança (14 elegíveis, nove apoiadas) e Música (25 elegíveis, 15 apoiadas).

Ministra promete “soluções de curto prazo"

Já ao final desta tarde, à margem da cerimónia de inauguração da exposição dedicada a Eduardo Souto de Moura pela Casa da Arquitectura, em Matosinhos, a ministra Graça Fonseca defendeu a necessidade de avançar com uma revisão “crítica” do contestado modelo de apoio às artes, que foi um dos cavalos de batalha do anterior secretário de Estado, Miguel Honrado. "Partilho da necessidade de encontrarmos respostas de curto prazo que dêem soluções para o que estas estruturas estão a dizer (...). É muito importante começarmos já a trabalhar no médio prazo para fazer uma revisão crítica do modelo de apoio às artes (...), como é proposta nas muitas cartas e intervenções que tenho visto”, afirmou a ministra. “É, de facto, algo que nos deve convocar a todos e, da parte do Governo, estou muito interessada e irei trabalhar com todas as estruturas”, vincou ainda.

Graça Fonseca garantiu que está “atenta às preocupações que as estruturas e os seus dirigentes” têm expressado, considerando que para a tutela “é muito importante aumentar a capacidade financeira para poder apoiar mais e melhor as actividades culturais e artísticas do país”, combate a que prometeu dedicar-se “assim que tomar posse” e “nos próximos anos”.

A ministra lembrou que a dotação do actual concurso representa “um crescimento de quase três milhões de euros face aos anteriores”, mas comprometeu-se a trabalhar em “soluções de médio prazo” que permitam o crescimento nos próximos anos e também em “soluções de curto prazo” que possam produzir efeitos já em 2020.

Sobre esta matéria, também na sexta-feira passada, o director-geral das Artes, Américo Rodrigues, contactado pela agência Lusa, disse que as entidades que não foram contempladas “podem e devem” contestar estes resultados provisórios, se deles discordarem.

A fase de audiência de interessados terminará no próximo dia 25 de Outubro e os contratos com as estruturas apoiadas serão assinados até ao final do corrente ano.