Se vir a sua vida reflectida numa música, isso pode ser uma canção de protesto

Um encontro em Grândola debateu as canções de protesto como parte da nossa história, nas letras, nas músicas e nos contextos.

Certo dia, já lá vão muitos anos, um senhor escreveu isto num livrinho: “Numa viagem que fiz a Coimbra apercebi-me da inutilidade de se cantar o cor-de-rosa e o bonitinho, muito em voga nas nossas composições radiofónicas e no nosso music-hall de exportação. Se lhe déssemos uma certa dignidade e lhe atribuíssemos, pela urgência dos temas tratados, um mínimo de valor educativo, conseguiríamos talvez fabricar um novo tipo de canção cuja actualidade poderia repercutir-se no espírito narcotizado do público, molestando-lhe a consciência adormecida em vez de o distrair.” O senhor, como talvez já tenham percebido, é José Afonso e o texto era um intróito explicativo à canção Os vampiros, incluído na 2.ª edição do livro Cantares (ed. Nova Realidade, 1967, pág. 82).

Seis anos depois, Fernando Lopes-Graça, no livro Disto e Daquilo (ed. Cosmos, 1973), dedicava, por sua vez, um capítulo àquilo que chamou “poesia e música de acção” (págs. 229-253), dizendo que um livro, um folheto ou uma recitação seriam insuficientes para que essa tal poesia de acção atingisse o seu “verdadeiro desígnio” (o de ser “utilizada por aqueles a quem se dirige”) e que “só mediante o veículo da música, através do canto, ela pode viver verdadeiramente e agir a fundo sobre a sensibilidade, estimulando à acção.” A tudo isto se entendeu, não só cá, mas um pouco por todo o mundo, chamar canção de protesto. Ou de luta, ou de resistência, ou (mais tarde, na efervescência de processos revolucionários), de intervenção.

As designações valem o que valem. E por isso são contínuo objecto de estudo, fixando-se as que mais sentido fazem num certo contexto. Voltando a José Afonso: no livro já citado, ele explica Grândola vila morena em escassíssimas palavras. “Pequena homenagem à Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, onde actuei juntamente com Carlos Paredes.” É verdade, foi em 1964, dez anos antes de tal canção ser usada como senha no 25 de Abril e se juntar, depois, ao lote das canções de luta. Pois foi no espaço dessa mesma colectividade que se realizou agora, em Grândola, um Encontro da Canção de Protesto que, entre 10 e 13 de Outubro, expôs ideias e promoveu debates em torno do tema.

Que é antigo, mas também novo, como se percebeu das várias sessões, onde participaram Eduardo Paes Mamede, José Fortes, António Moreira, Carlos Moreira, Arturo Reguera, Francisco Fanhais, Filipe Sambado, Pedro Boléo, João Carlos Callixto, Joaquim Vieira, Manuel Freire, Mário Correia, Salwa Castelo-Branco, Samuel Quedas e Viriato Teles. Antes, foi inaugurada uma exposição de discos de vinil da colecção privada de Hugo Castro (também presente, moderando ainda um dos debates junto com Ricardo Andrade).

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E houve música, claro. Primeiro com Luís Galrito e Napoleão Mira (dia 11), depois, com algumas personagens a “saltarem” das capas dos discos ali expostas para o palco: Tino Flores, Manuel Freire, Samuel Quedas, João Lóio e Francisco Fanhais, pela primeira vez a cantarem lado a lado (dia 12), numa sessão musical que, respeitando o espírito original das canções, foi descontraída e bem-humorada, sem ceder a saudosismos. Por fim, um ensemble da Orquestra Juvenil da SMFOG/Música Velha e, a fechar (dia 13), o Grupo Coral Etnográfico Vila Morena.

De tudo isto, o que fica? Muito. Além dos alertas e sugestões lançados nos debates (atender sempre ao contexto, preservar e investigar com zelo patrimonial, atender aos novos tempos e às novas expressões de protesto), foi inaugurado o “novo sítio em rede” do Observatório, que estando ainda em evolução, é já uma boa base para que, a partir dele, e com ligação ao recém-anunciado Arquivo Sonoro Nacional, se faça um inventário o mais completo possível.

Porque no curso destas canções está, também, uma parte da história de Portugal: nas letras, nas músicas, nas intenções e nos contextos. A Câmara Municipal de Grândola, co-fundadora do Observatório (junto com a Associação José Afonso, o CESEM, o INET-md e o IHC), tem vindo, a par disso, a contribuir para a inventariação de registos neste campo, de que são exemplo o disco Para Sempre José Afonso, que inclui 14 versões da canção Grândola vila morena (2018) ou o livro José Afonso, O Tempo e o Modo, de Alcides Bizarro (2019), que na capa tem José Afonso em Grândola, em 1972, com Samuel (bem jovem) a segurar no papel com as letras.

E para não dizerem que não falamos de protestos nos tempos recentes, aqui fica uma pequena lista: Eles comem tudo, de Chullage; O submarino irrevogável, de Rogério Charraz; Aquilo que eu não fiz, de Tiago Bettencourt; Deixem lá, de Filipe Sambado; o muito cantado Parva que sou, dos Deolinda; L’Estaca, do catalão Lluis Llach, reinterpretada aqui pelo Coro da Achada em solidariedade com a Catalunha; ou, lá fora, No Trump! No KKK! No fascist USA!!, dos Green Day; Bolso nada, dos Francisco El Hombre; ou Reis do agronegócio, de Chico César; A lista é vasta, procurem-nas. Porque nelas se vai escrevendo parte da nossa história e do nosso futuro.

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