Para onde vão os votos na “geringonça”?
Declarar simplesmente que a “geringonça” não morreu porque se vai continuar a trabalhar “nos termos” em que se trabalhou nos últimos anos é enganador e é curto.
A “geringonça” não foi só a experiência política que conseguiu a notável proeza de colher elogios em latitudes tão díspares como o Financial Times – “Perspectivas brilhantes para Portugal levam alguma esperança à Europa” – ou o pensador anarco-sindicalista e socialista libertário Noam Chomsky – “pelo que pude ir apreendendo, parece-me um dos desenvolvimentos mais esperançosos do período actual”.
A “geringonça” foi também a solução que esteve presente no voto de muitos portugueses que deram uma vitória folgada ao PS, permitiram ao Bloco de Esquerda manter o número de deputados, mesmo com a dispersão de votos à esquerda, e, se a CDU se ressentiu, é admissível que as razões para a diminuição da sua expressão eleitoral possam ser encontradas em problemas estruturais do PCP. E não é irrazoável pensar que houve muitos votos que escaparam ao PS porque os eleitores apreciaram a solução parlamentar e não lhe quiseram entregar uma maioria absoluta. É bem provável que o PAN, por exemplo, possa ter beneficiado disso.
Com um Parlamento dividido entre os 142 mandatos dos que participaram ou apoiaram a “geringonça” e os 84 dos que a rejeitam, haverá hoje muitos portugueses a perguntar-se como tão clara vitória se conjuga com o fim anunciado da solução que estimaram. É por demais óbvio que os resultados eleitorais permitem ao PS outra amplitude de acção. Mas ao fim de uma semana de negociações (?) que levaram o Bloco a decretar o óbito da solução e o Presidente da República a projectar uma estabilidade negociada à vista não sobra horizonte nenhum para quem apreciou esta solução?
O PS, sentado à mesa da realpolitik, pode justificar que o PCP se pôs de fora e o Bloco quis demais. Mas declarar simplesmente que a “geringonça” não morreu porque se vai continuar a trabalhar “nos termos” em que se trabalhou nos últimos anos é enganador e é curto.
Se não quer dar razão aos que consideram que o entendimento dos últimos anos não foi mais do que um mero recurso táctico, a que deitou mão por questões de sobrevivência, António Costa tem a obrigação perante os eleitores da “geringonça” de mostrar mais do que vagas boas intenções. Se não é indiferente governar à direita ou à esquerda, o PS devia mostrá-lo no programa de Governo e anunciar desde já com quem conta para o concretizar. Similar clareza deveria vir dos pretéritos parceiros que, afinal, lutaram contra uma maioria absoluta porque acreditavam numa solução negociada à esquerda. Há muitos eleitores que esperam uma resposta.