A invasão turca: a hora da Europa
É um erro grave pensar que a invasão turca é apenas mais uma guerra do Médio Oriente. Aceitarem-se guerras de conquista e crimes contra a humanidade é permitir a destruição progressiva da Ordem Internacional. É aceitar um mundo em que as guerras de agressão voltam a ser a regra.
A agressão turca, com o beneplácito de Trump, contra o Curdistão, controlado pelas Forças Democráticas Sírias, aliadas decisivas do ocidente na luta contra o Daesh, é uma clara confirmação de que a ordem do Médio Oriente sob liderança americana, com o apoio crítico dos europeus, entrou em colapso.
Erdogan justifica a guerra com o mantra do combate ao terrorismo e com o objetivo de controlar uma faixa do território sírio para aí deslocar os milhões de refugiados que a Turquia acolheu. Para Trump, a ofensiva de Erdogan representa os crocodilos e as cobras que queria colocar numa fossa entre o México e os Estados Unidos. Trump, para justificar a sua traição, chama à invasão turca uma “guerra tribal centenária”, que nos faz lembrar a formulação racista “deixem que esses selvagens se matem uns aos outros”.
É verdade que os cidadãos americanos estão fartos de ver os seus soldados partirem para guerras inglórias no Médio Oriente e regressarem com o opróbrio resultante dos crimes que aí cometeram, como na invasão do Iraque. Todavia, também é verdade que a presença militar americana no nordeste da Síria era reduzida e tinha o efeito positivo de dissuadir uma ofensiva turca.
É indignado que constato a impunidade com que a Turquia invade e bombardeia o nordeste da Síria. Indignação que é a nossa desde 2011, quando Assad, com o apoio militar da Rússia e do Irão, recorreu à violência mais brutal para reprimir a vontade democrática dos sírios. O sofrimento de curdos e árabes (muçulmanos e cristãos) do nordeste da Síria é o mesmo dos habitantes de Alepo, de Homs ou de Ghouta.
Americanos (durante os anos Obama) e europeus tinham a obrigação de ter protegido os sírios. Como afirmou Kofi Annan no seu discurso do milénio, é um imperativo ético pôr termo à impunidade dos crimes contra a humanidade, recorrendo à força, se necessário. Foi por isso que apoiei a intervenção humanitária na Bósnia, para pôr fim ao massacre dos muçulmanos pelos nacionalistas sérvios e a criação do TPI. E considerei, como considero, um avanço da humanidade que tenham sido julgados os que tinham cometidos crimes na Bósnia e na Croácia, na Libéria ou no Ruanda.
A intervenção na Líbia, justificada com recurso ao princípio do direito de proteger, legitimada pelo Conselho de Segurança, foi desvirtuada na sua aplicação e tornada numa operação de mudança de regime. O fracasso líbio tornou mais difícil a criação dos consensos necessários para proteger os sírios e explica, em parte, o recuo de Obama, que expôs a incapacidade dos europeus para intervirem sem os americanos.
A invasão da Síria pela Turquia põe em causa os princípios fundadores das Nações Unidas. A incapacidade do Conselho de Segurança das Nações Unidas, apesar dos esforços europeus, em aprovar uma resolução que condene a invasão, mostra como estamos distantes dos anos 90. Em 1991, o Conselho de segurança não só condenou a invasão do Kuwait por Saddam Hussein, como legitimou a coligação internacional dirigida pelos Estados Unidos para lhe pôr termo.
Das políticas de intervenção humanitária dos anos 90 passamos para as guerras de conquista do século XXI. O momento de viragem foi a invasão do Iraque em 2003 pelos Estados Unidos. A invasão do Iraque foi uma guerra de conquista que abriu um perigoso precedente, a que se seguiram a anexação da Crimeia pela Rússia de Putin e hoje a invasão do Curdistão sírio pela Turquia.
É um erro grave pensar que a invasão turca é apenas mais uma guerra do Médio Oriente. Aceitarem-se guerras de conquista e crimes contra a humanidade é permitir a destruição progressiva da Ordem Internacional. É aceitar um mundo em que as guerras de agressão voltam a ser a regra.
Ainda há dias, numa conferência em Bruxelas, foi dito por um alto responsável europeu que a União nada podia fazer na Síria. Não podemos aceitar tal resposta.
Quinhentos milhões de europeus não podem, cinicamente, deixar que centenas de milhares de pessoas sejam assassinadas na Síria e só se preocuparem quando Erdogan os ameaça com os 3,5 milhões de refugiados sírios que alberga. A União Europeia deve responder à chantagem com a defesa dos princípios em que se funda e preparar-se para receber refugiados caso seja necessário. O Congresso norte-americano ameaça a Turquia com sanções económicas, caso não trave a ofensiva. A União Europeia pode e deve associar-se a essa ameaça.
É preciso mostrar a Erdogan que, com esta ação militar, perdeu o que lhe restava do capital de simpatia que tinha conquistado na Europa, com as reformas democráticas do início deste século, que entretanto pôs em causa, e com uma generosa política de acolhimento de refugiados sírios.
O regresso ao projeto da Europa como potência multilateral é hoje a única esperança para nos prevenirmos das consequências do caos e da guerra no Médio Oriente. A esperança é ténue, mas a União Europeia já não pode contar com os Estados Unidos para garantir a sua segurança. Mesmo num mundo pós-Trump, a União não poderá escapar às suas responsabilidades na construção da paz no Sul do mediterrâneo, se quiser ter paz na Europa.
Fundador do Fórum Demos