Nobel da Paz para o homem que quer mudar tudo na Etiópia

Num ano e meio como primeiro-ministro, Abiy Ahmed fez a paz com a Eritreia e lançou o seu país no caminho da abertura política. Mas os seus desafios não o deixam celebrar muito tempo.

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Abiy Ahmed foi o primeiro chefe de Governo etíope da tribo oromo Susana Matos

Quando o primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed Ali, aterrou no aeroporto de Asmara, a capita da Eritreia, em Julho do ano passado, dificilmente se diria que ali estava o líder de um país tecnicamente em guerra com o vizinho. À sua espera um grupo de mulheres com trajes tradicionais dançava e cantava. Mais tarde, uma multidão acompanhou o carro que transportou Abiy pela cidade e viram-se bandeiras dos dois países que durante décadas protagonizaram um dos conflitos mais sangrentos em África.

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A guerra que opunha os dois países vizinhos tinha terminado na prática em 2000, com a assinatura do Tratado de Argel, mas a Etiópia colocou sempre vários obstáculos à implementação das suas disposições. Abiy, escolhido como primeiro-ministro em Abril de 2018, atreveu-se a dar o passo que antes dele ninguém ousara dar. Por isso, mas também por muito mais, recebeu o Prémio Nobel da Paz.

Os esforços de Abiy “para alcançar a paz e a cooperação internacional, em particular pela sua iniciativa decisiva para solucionar o conflito fronteiriça com a vizinha Eritreia” foram as justificações centrais oferecidas pelo Comité Nobel Norueguês, responsável pela atribuição deste prémio.

Na sua reacção à notícia, Abiy disse estar “sensibilizado e empolgado” por receber o Nobel, que considerou “um grande reconhecimento”.

É comum caracterizarem-se os Nobel da Paz em duas categorias informais: entre os que servem para premiar iniciativas concretas, e os que têm o objectivo de funcionar como um incentivo para um processo em curso. A atribuição do prémio a Abiy, que estava bem colocado nas casas de apostas, embora atrás dos activistas pelo clima, obedece às duas categorias em simultâneo. Olhando para a ambiciosa agenda que o dirigente etíope tem proposto para o seu país, e também para a região do Corno de África, dificilmente poderia ser de outra maneira.

O fim da guerra

Aos 42 anos, Abiy tornou-se num dos líderes mais jovens em África, quando assumiu a chefia do Governo, prometendo desde logo uma autêntica revolução num dos regimes mais fechados do continente. Mas a sua ascensão ocorreu dentro da lógica fechada e opaca do sistema etíope, bem diferente do estrondo próprio das revoluções. Foi uma crise que lhe começou por abrir uma janela que poucos antecipavam.

Em Fevereiro do ano passado, o primeiro-ministro Hailemariam Desalegn apresentou a demissão ao fim de três anos de protestos que semearam o caos na Etiópia. Desde 1991, que os jogos de poder no país são travados no interior da Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (FDRPE), uma coligação composta por quatro partidos regionais representativos das tribos mais influentes. O mais certo seria que o novo chefe de Governo fosse da etnia tigré, que apesar de ser minoritária domina o aparelho de Estado. Uma sucessão de desistências e obstáculos legais acabou por conduzir à eleição de Abiy, da etnia oromo, para a liderança da coligação ocupando o cargo de primeiro-ministro.

A quebra da hegemonia dos tigré seria sempre uma pedrada no charco, mas a verdadeira revolução começou a ganhar forma quando Abiy se sentou na cadeira de primeiro-ministro. Uma das primeiras medidas tomadas pelo seu Governo foi o reconhecimento da delimitação fronteiriça com a Eritreia conforme o que foi estabelecido no Tratado de Argel. A mudança da posição do Governo de Adis Abeba deu o empurrão para que o conflito iniciado em 1998 pudesse finalmente ficar para trás.

Durante dois anos, os dois países que chegaram a estar unificados depois da II Guerra Mundial, travaram uma guerra sangrenta na qual morreram perto de cem mil pessoas. Desde 2000, Etiópia e Eritreia viviam num ambiente de tensão permanente, de costas voltadas e com o espectro de um reacendimento do conflito sempre presente. As relações diplomáticas foram cortadas e não era sequer possível fazer um telefonema entre os dois países vizinhos.

Ambições e perigos

O restabelecimento da paz entre a Etiópia e a Eritreia é apenas a face mais visível da ambiciosa agenda que Abiy trouxe consigo. Num ano e meio, o antigo oficial dos serviços secretos do Exército tem aparecido como mediador em diversos conflitos regionais, fazendo valer o peso diplomático de um país com mais de cem milhões de habitantes e uma das principais economias do Corno de África. Uma das intervenções mais relevantes foi a sua ajuda a negociar um acordo de partilha de poder no Sudão.

A nível interno, Abiy tem feito progressos assinaláveis no sentido de uma maior abertura política. Uma das primeiras medidas que tomou foi a libertação de milhares de presos políticos e a promessa de que as eleições de 2020 serão justas e livres. As restrições à liberdade de imprensa foram abolidas e a lei marcial imposta pelo seu antecessor por causa dos protestos foi levantada. Exilados políticos dissidentes da FDRPE foram convidados a regressar. O primeiro-ministro escolheu mulheres para mais de metade dos cargos ministeriais no Governo e, pela primeira vez, foi nomeada uma mulher para presidir o Supremo Tribunal.

Nos primeiros meses de Governo, o ritmo de medidas inovadoras era tão acelerado que se dizia que os jornalistas tinham dificuldade em acompanhar os anúncios. A Economist chegou a descrever o fenómeno da “Abiymania”, e nem mesmo uma tentativa de assassínio dois meses depois de ter tomado posse parecia abalar o reformismo de Abiy.

A factura parece, no entanto, estar a chegar. Em Junho, uma tentativa de golpe de Estado na região de Amhara, em que foram assassinados altos responsáveis militares, foi o culminar de uma crise com potencial muito destrutivo. Na sua tentativa de tentar equilibrar a correlação de forças no aparelho político-militar, Abiy pode ter despertado o ressentimento dos tigrés, desejosos de manter o seu domínio.

A resposta do Governo ao atentado em Amhara causou alguma perplexidade entre os apoiantes das reformas políticas de Abiy. Nos dias seguintes, as autoridades prenderam centenas de pessoas, incluindo políticos e jornalistas, acusados de promover o ódio étnico, e a Internet chegou a estar bloqueada. À primeira grande contrariedade, dizem os seus críticos, Abiy regressou aos velhos hábitos autocráticos dos seus antecessores. Um dos seus principais desafios é conter a violência inter-étnica, responsável por fazer da Etiópia um dos países com mais deslocados internos, com 2,5 milhões.

“Não há dúvida que alguns irão achar que este prémio está a ser entregue demasiado cedo”, observou o Comité Norueguês do Nobel, antecipando-se aos que vêem em Abiy um líder mais preocupado com a imagem internacional do que em produzir resultados concretos.

Getachew Reda, um tigré crítico do primeiro-ministro, aludia a isso mesmo vários meses antes do anúncio do Nobel: “Ele simboliza o tipo de ambição e coragem para irromper pelos céus que a juventude deve significar, mas ele também represente uma tendência para passar por cima das coisas, para transformar as décadas em meses, anos, para acelerar as coisas.”

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