O Valete e a sua Dama
O que nos deveria preocupar é a realidade que o vídeo de Valete retrata (ainda que hiperbolicamente) e que consiste na persistente (crescente?) e legitimada lógica de posse dos homens (jovens) sobre as mulheres (jovens)
Por razões de honestidade moral e intelectual, há três declarações prévias que devo fazer:
Em primeiro lugar, eu (como, aposto, a maioria dos que agora escrevem e falam sobre ele) não conhecia o rapper Valete, nem a sua obra. Nesse sentido, “Chapeau!” para o dito Valete que realizou a aspiração de qualquer artista: ser falado, conhecido e reconhecido.
Em segundo lugar sou feminista, pelo que repudio, naturalmente, qualquer forma de submissão, subalternização, desvalorização ou desvantagem em razão do género. E, mais do que feminista, sou pessoa, pelo que me enoja a gratuidade e a futilidade da violência, contida no polémico vídeo do dito rapper.
Em terceiro lugar, conheço os contextos sociais em que nasceu e cresceu o Valete (e em que nascem e crescem, todos os dias, muitos outros potenciais Valetes). E refiro-me aos bairros sociais, aos bairros “clandestinos”, ou aos bairros de realojamento, que se espalham pelas periferias de Lisboa e que possuem, como todos os contextos sociais, uma identidade, um código de valores e uma vivência quotidiana características.
E foi esta identidade, este código de valores e esta vivência quotidiana que, por se distinguirem (desvantajosamente) das demais, estiveram na origem do rap, enquanto género musical de protesto, sim, mas um protesto que, como aliás deveria acontecer com todos os protestos, vem “de dentro”, isto é, vem das experiências relatadas na primeira pessoa, e vem das vidas, cruamente poetizadas, vividas na primeira pessoa.
Nesse sentido, o rap representa o protesto no seu estado mais puro, o que vem das entranhas e que não nasce nas mesas de café, mais ou menos aburguesadas, onde se convoca a inspiração em torno de uma bica.
Ora é este carácter de genuinidade crua e dura, porque cruas e duras são as vidas que nele se contam, que converte o rap num género musical capaz de agitar consciências, de mostrar as realidades escondidas e, consequentemente, de reivindicar mudanças. É isso que faz nos Estados Unidos, é isso que faz na Europa e, naturalmente, é isso que faz em Portugal.
E é violento, o rap. Agride-nos nas suas palavras, como que “cuspidas em raiva”, porque é essa a sua essência e é esse o seu propósito: alertar para os contextos sociais ocultados pelas sociedades do “bem-estar” e alertar para a desinserção absoluta em que vivem determinadas minorias.
Minorias e contextos sociais que são violentos e que, não tenhamos ilusões, combatem o preconceito com preconceito e fechamento. Olho por olho, dente por dente!
Ora, naturalmente, estes alertas só têm realismo se mostrarem, em toda a sua crueza, a realidade quotidiana das pessoas, em nome de quem se propõem falar, ou que se propõem “defender”.
Foi isto, aliás, que sempre assumiu como desígnio toda a arte de protesto e de intervenção, designadamente a música. E, como tal, é isto que o rap (se genuíno) deve fazer.
O que, mais uma vez, não podemos é, recorrendo ao velho ditado português, “querer sol na eira e chuva no nabal”, ou seja, não podemos defender o rap, elevando-o aos píncaros, quando ele ataca o status quo, a desigualdade social ou a indiferença capitalista, para, logo a seguir, o diabolizar, quando ele mostra a realidade dos dias, tal como ela é vivida “por dentro e de dentro”.
Porque o que o que o dito vídeo faz é, exactamente, isso: mostrar como muitos (e não apenas o dito Valete) vivem e sentem o “amor”. É triste? Sem dúvida. É revoltante? Mais ainda. Mas é, também e sobretudo, real!
Por isso, não é o vídeo do Valete que nos deveria preocupar (e, aliás, só preocupará enquanto não surgir outro qualquer fait-divers, como aconteceu, à escala global, aqui há uns anos, com um qualquer polémico vídeo de Eminem), nem o seu potencial de influência negativa, no que à violência sobre as mulheres diz respeito (infelizmente, os números mostram que essa influência negativa já está, há muito, instalada e, por outro lado, as gerações mais novas, enquanto potencial público-alvo, estão permanentemente expostas às mais diversas formas de violência).
O que nos deveria preocupar é a realidade que ele retrata (ainda que hiperbolicamente) e que consiste na persistente (crescente?) e legitimada lógica de posse dos homens (jovens) sobre as mulheres (jovens), em muitos destes contextos sociais negligenciados, esquecidos e na “margem”.
Os contextos onde os jovens saíram cedo de uma escola que nunca os motivou ou inseriu (e que suspirou, de alívio, com a sua saída!). Os contextos onde vigora a lei do “mais forte”. Os contextos onde a criminalidade se afigura, para muitos destes mesmos jovens, o caminho mais fácil para contrariar a dureza das vidas de trabalho e de submissão, percebidas nos exemplos dos seus pais e dos seus avós.
Os contextos em que o estatuto feminino juvenil decorre de ser a “dama”, a “boo”, ou o que seja, de um qualquer desses “mauzões” do bairro. Porque se “forem dele” estão protegidas e vão ter roupas e ténis de marca, comprados, ao domingo à tarde, no Colombo. E se “elas são deles, não podem ser de outro”. E se forem, “merecem o castigo”!
Porque é esta a mensagem da canção e do vídeo do dito Valete. E a canção vai passar de moda. E o vídeo vai ser esquecido.
E a realidade, esta realidade, vai ficar, enquanto nós nos distraímos em protestos de café.