O 11 de Setembro jurídico: a ideologia dos juízes e o Brexit
Em democracia, estimular uma politização do judicial não é solução para resolver os problemas levantados por artimanhas censuráveis, nem más decisões políticas dos governantes.
1. A 11 de Setembro de 2019 duas decisões jurídicas de sentido contrário foram proferidas pelas instâncias judiciais máximas da Escócia (Court of Session) e da Inglaterra e Gales (High Court of Justice). A sentença do tribunal escocês considerou ilegal que entre o fim da sessão parlamentar e a abertura da próxima sessão possa decorrer tanto tempo — o encerramento deu-se na segunda semana de Setembro e reabertura será apenas a 14 de Outubro. Por sua vez, a outra sentença, proferida pelo tribunal inglês, considerou que tal decisão é uma prerrogativa constitucional do Governo (o Gabinete) e que se trata de uma matéria política, não sujeita a escrutínio jurídico, ou seja, não susceptível de uma decisão dos tribunais. Entretanto, o caso foi remetido ao Supremo Tribunal do Reino Unido para uma decisão em última instância (ver UK Human Rights Blog, “A Tale of Two Judgments: Scottish Court of Session rules prorogation of Parliament unlawful, but High Court of England and Wales begs to differ”, 11/09/2019). Mas qual delas foi a boa decisão?
2. A sessão parlamentar / legislativa 2017/2019 foi a mais longa da história parlamentar britânica? Justifica-se, desde logo por isso, um período maior até à abertura da próxima sessão legislativa, como defende o Primeiro-Ministro Boris Johnson? (Ver House of Comuns Library, “Is this the longest parliamentary session ever?”, 10/05/2019). É necessário deixar claro que estamos perante um assunto particularmente complexo e não cabe aqui fazer uma análise técnico-jurídica. Apenas algumas observações gerais para enquadramento deste. No sistema jurídico-constitucional britânico, os casos precedentes têm um papel importante. A legislação relevante pode ser de há vários séculos. A Constituição do Reino Unido escapa, em grande parte, aos quadros mentais e conceptuais do constitucionalismo português e europeu continental. Combina um conjunto de práticas e de convenções constitucionais que se foram enraizando gradualmente ao longo de vários séculos, com diversas normas legais escritas — é uma constituição não codificada. Por isso, é ainda mais susceptível de interpretações díspares. (Mas também é mais flexível do que as constituições produzidas por uma assembleia constituinte num dado momento histórico, com um texto rígido de valor jurídico superior, sendo mais facilmente adaptável à transformação social e política.)
3. Neste caso, a questão mais do que de natureza constitucional é das profundezas das fronteiras entre o político e o jurídico. Com as grandes divisões da sociedade britânica face ao Brexit, um dos maiores problemas que os tribunais hoje enfrentam — o qual se pode observar igualmente nos EUA, no Brasil e um pouco por todo o mundo ocidental, União Europeia incluída — é o da politização do poder judicial. Com este risco vem a descredibilização dos tribunais como instituições imparciais e justas, o que traz, por sua vez, como consequência inevitável, uma perda de legitimidade aos olhos da sociedade. Um processo de politização e perda de legitimidade está a ocorrer no Reino Unido? A existência de duas decisões jurídicas contraditórias num caso tão importante politicamente e objecto de grandes discussões públicas lança, certamente, dúvidas, incerteza e desconfiança sobre o papel dos tribunais e dos juízes. Para os não-juristas — os quais, em qualquer sociedade, são naturalmente a maioria dos cidadãos — é tentador encontrar explicações, aparentemente racionais e bem fundamentadas, para as diferentes sentenças. Mas estas situam-se no plano político-ideológico, não da imparcialidade judicial e das boas regras da hermenêutica jurídica.
4. Eis duas possíveis explicações ideológicas para as decisões judiciais contraditórias. No referendo de 2016 a população da Escócia votou a favor da permanência na União Europeia. Os escoceses são contra a saída da União Europeia, especialmente contra uma saída sem acordo e querem um novo referendo para obter a independência. Assim, os juízes escoceses da Court of Session são Remainers camuflados. Usaram argumentos jurídicos para esconder sua visão político-ideológica de oposição ao Brexit e ao Governo inglês de Boris Johnson. Uma argumentação similar poderá ser usada para explicar — e sobretudo para descredibilizar — a decisão da High Court of Justice de Inglaterra e Gales. Os juízes ingleses consideraram ser uma decisão política a reabertura do Parlamento Britânico (o Parlamento de Westminster) para uma nova sessão legislativa a 14 de Outubro, que não cabe aos tribunais. Fizeram isso porque a Inglaterra votou maioritariamente a favor da saída da União Europeia em 2016 e são sobretudo os ingleses que querem o Brexit. Os juízes da High Court são Brexiteers que encontraram uma solução jurídica correspondente à sua visão e simpatias político-ideológicas. Quiseram facilitar a tarefa do Governo de Boris Johnson e o seu plano de saída sem acordo da União Europeia a 31 de Outubro.
5. A instalação do quadro mental anteriormente descrito na sociedade é muito negativa. A crítica de que os juízes tomam decisões por convicções político-ideológicas tem potencialmente fortes repercussões. Abala seriamente a convicção na sociedade de que os tribunais aplicam a lei de forma neutra e imparcial. Entre os políticos e juristas britânicos abriu-se uma acesa discussão em torno da separação de poderes e do uso e abuso de direito. O Governo de Boris Johnson abusou do seu direito, ao propor à monarca um prazo excessivo para iniciar a nova sessão legislativa, feito apenas com o intuito de impedir o Parlamento de participar nas decisões do Brexit? Ou são os juízes e o poder judicial que estão a invadir a esfera política e área de competência do Governo ao pretender ilegalizar uma decisão — formalmente praticada pela monarca — que é de natureza política e não jurídica? Não sei qual vai ser a decisão do Supremo Tribunal do Reino Unido neste delicadíssimo caso. A partir de 17 de Setembro saberemos. Mas a judicialização do Brexit é mais um passo dispensável num processo potencialmente danificador da legitimidade das instituições. Aplaudir decisões judiciais porque são do nosso agrado ideológico é ter vistas curtas. Em democracia, estimular uma politização do judicial não é solução para resolver os problemas levantados por artimanhas censuráveis, nem más decisões políticas dos governantes. Mais tarde ou mais cedo, destrói a confiança nos juízes e a legitimidade dos tribunais. É aos cidadãos que cabe a tarefa de julgar os governantes nos actos eleitorais.