Bercow anuncia saída no dia em que Westminster prepara fecho de portas e o “Brexit” se complica
Presidente da Câmara dos Comuns abandona o cargo até ao dia 31 de Outubro. Com o Parlamento suspenso a partir de terça-feira, a entrada em vigor da legislação contra o no-deal enche de dúvidas a estratégia de Johnson para forçar a saída da UE.
Quando a ex-primeira-ministra Theresa May anunciou o agendamento de eleições antecipadas para Junho de 2017, John Bercow prometeu à família que aquela seria a sua última sessão legislativa como speaker (presidente) da Câmara dos Comuns de Westminster. Esta segunda-feira, dez anos depois de assumir o cargo de mandante e coordenador dos trabalhos da câmara baixa do Parlamento britânico, e horas antes de os deputados iniciarem nova maratona para decidir a convocação de eleições, o carismático deputado conservador entendeu ser a altura certa para apresentar o calendário para o cumprimento dessa promessa.
Assim, em caso de aprovação, pouco provável, da moção do Governo para a antecipação das legislativas para o próximo dia 15 de Outubro – prevista para o final da noite desta segunda-feira ou início da madrugada de terça-feira –, Bercow abandona imediatamente o posto que ocupa desde 2009. Mas se chumbada a moção, o speaker mantém-se no cargo até ao dia 31 de Outubro.
Na hora da despedida, o homem que foi levado pelo carrossel do “Brexit” a lidar com desafios institucionais e protocolares nunca antes vistos na Câmara dos Comuns, através de interpretações livres e originais das regras e tradições muito próprias do velhinho sistema constitucional britânico, agradeceu a oportunidade de ter cumprido a “maior honra da sua vida” e assegurou não se arrepender de nada.
“Durante o meu tempo de speaker procurei reforçar a autoridade do poder legislativo, posição pela qual nunca pedirei desculpas a ninguém, em lado nenhum e em nenhum momento”, afiançou Bercow, numa clara resposta àqueles que, principalmente dentro da ala eurocéptica do seu partido, o acusaram repetidamente de ser parcial na definição da agenda parlamentar, por ter defendido a permanência do Reino Unido na União Europeia no referendo de 2016.
O anúncio-surpresa de Bercow é, no entanto, apenas um dos vários momentos altos da sessão plenária desta segunda-feira na Câmara dos Comuns, a última da actual sessão legislativa.
A suspensão do Parlamento foi encarada por Boris Johnson como solução para retirar o Reino Unido da UE no dia 31 de Outubro, mas entre o seu anúncio, no final de Agosto, e a sua concretização, a partir de terça-feira, Westminster foi palco de rebeliões indesejadas, alianças inéditas e votações dramáticas, que contribuíram para bloquear ainda mais um processo já de si atolado.
E agora, Johnson?
Entendida pela oposição como uma jogada do Governo para tirar tempo de trabalho aos deputados que querem evitar uma saída da UE sem acordo, a suspensão oficial do Parlamento inicia-se depois da última votação desta segunda-feira e só será levantada no dia 14 de Outubro. Até lá, Johnson terá de tomar decisões, sejam elas quais forem.
Com a entrada em vigor, também esta segunda-feira, e após a assinatura da Rainha Isabel II, da legislação que obriga o Governo a pedir novo adiamento do divórcio – até 31 de Janeiro de 2020 – se não chegar a um novo acordo de saída com Bruxelas ou se o Parlamento não der luz verde a um no-deal, o primeiro-ministro britânico vê-se obrigado a puxar pela criatividade legal, burocrática e protocolar da seu equipa, se quiser cumprir o que tem prometido repetidamente desde que foi escolhido pelo Partido Conservador para suceder a Theresa May: resolver o “Brexit” ou “morrer” a tentá-lo.
A estratégia assumida para contornar os obstáculos passava pelo agendamento de eleições antecipadas para o dia 15 de Outubro. Dessa forma e fazendo figas pelo cumprimento das sondagens, Johnson apostaria tudo numa vitória contra Jeremy Corbyn e na formação de uma maioria parlamentar suficientemente estável – retirando do boletim de voto os 21 conservadores rebeldes que lhe estragaram os planos – para impor a sua estratégia e cumprir o “Brexit”.
Mas o líder do Labour só aceita nova votação depois de afastado o perigo do no-deal – o mais incerto e potencialmente mais nefasto dos cenários para a economia britânica. “[A suspensão] é vergonhosa. O Parlamento deveria estar em funções para responsabilizar a actuação do Governo. E o primeiro-ministro parece querer fugir das perguntas”, lamentou Corbyn.
Tudo aponta, porém, para novo chumbo dos deputados à moção do Governo para convocar eleições. Para ser bem-sucedido, Johnson necessita do apoio de pelo menos dois terços da Câmara dos Comuns. Mas a oposição à proposta tory, previamente anunciada por Partido Trabalhista, Liberais-Democratas, Partido Verde, Grupo Independente e Plaid Cymru, dificilmente faz antever outro cenário que o da derrota do Partido Conservador, que mesmo aliado com o Partido Unionista Democrático, da Irlanda do Norte, perdeu recentemente a maioria na câmara.
Sem a possibilidade de ir às urnas antes de 31 de Outubro e obrigado, por lei, a pedir a Bruxelas um terceiro adiamento da desfiliação britânica da UE, sobram poucas alternativas a Boris Johnson, e mesmo as que sobram não colhem simpatia dentro várias facções do Partido Conservador.
Ignorar a legislação e o procedimento constitucional, legal e real que lhe deu vida é uma possibilidade segredada nos corredores de Downing Street, apesar dos que, dentro e fora do centro do poder, a entendem como antidemocrática. Colocar a decisão nas mãos dos tribunais permitiria ao primeiro-ministro manter a sua posição “até às últimas consequências”, mas poderia sair-lhe demasiado caro, se fosse derrotado – implicaria pena de prisão, no mais extremo dos desfechos.
De Bruxelas dependem outras duas possibilidades, nenhuma de execução fácil ou de eficácia assegurada: enviar a carta necessária para formalizar o pedido de adiamento do “Brexit” e anexar uma segunda carta a pedir aos 27 que ignorem a primeira; ou pedir a um dos Estados-membros que vete novo adiamento da saída.
Há ainda a hipótese de deixar que seja Corbyn a pedir o adiamento da saída, na pele de primeiro-ministro. Mas este cenário, remoto, dependeria de uma inédita moção de censura convocada e vencida pelo Governo, a si próprio, da capacidade da oposição para se organizar, em seguida, para evitar o no-deal e da confiança na palavra do líder trabalhista, que promete eleições a seguir ao dia 31 de Outubro.
E, claro, de não se importar de ver Jeremy Corbyn receber as chaves do número 10 de Downing Street. Mesmo que por pouco tempo.