A propósito do alegado “Museu de Salazar”: a História e os seus documentos
Obviamente que quem lida com a história com rigor e objectividade, utilizando os documentos (de toda a espécie), jamais seria capaz de criar um museu hagiológico sobre Salazar.
Um historiador ou até um simples cidadão deve ler a História através dos seus documentos. Caso contrário, a História transforma-se em “Estória”. Apresento esta ideia indiscutível porque se fala constantemente de um “Museu Salazar” em vários artigos de opinião, petições públicas e até textos e desenhos humorísticos. Todavia, pergunto: Quem falou, responsavelmente, alguma vez, de um “Museu Salazar”? Mais precisamente, quem disse que se pretendia fazer um “Museu” para dignificar a figura do “Chefe” do autoritário, se não totalitário, sistema político conhecido por Estado Novo?
O que leio no primeiro texto do Presidente da Câmara de Santa Comba Dão é que, depois de concluídas as obras da antiga escola do Vimieiro (“antigo e icónico equipamento escolar”), se vão apresentar ali “serviços multimédia e exposições temporárias, servindo de alavanca para a musealização de todo o espaço”. Esse espaço intitular-se-ia Centro Interpretativo do Estado Novo (CIEN). E o presidente Leonel Gouveia diz explicitamente: “Este será um local para o estudo do Estado Novo e nunca um santuário para nacionalistas”. Esclareceu ainda: “de modo algum se pretende contribuir para a sacramentalização ou diabolização da figura do estadista. Pretende-se, apenas e só, fazer um levantamento científico e histórico de um regime político, enquanto acontecimento actual”. E acrescentou que esse espaço teria a colaboração científica do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20), citando o nome do seu actual coordenador, António Rochette, de João Paulo Avelãs Nunes (professor da Faculdade de Letras, autor de uma tese de doutoramento sobre o Estado Novo e o volfrâmio e verdadeiro motor do projecto) e a minha pessoa (que dediquei muitos anos ao estudo do sistema salazarista e que, entre outras obras e artigos, sou autor do livro Estados Novos, Estado Novo, e por isso deveria fazer parte de uma equipa de conselheiros). Ainda o presidente de Câmara afirma que este será apenas um dos pólos da região a ser contemplado no “Projecto alargado da «Rota das Figuras Históricas»”.
Se os muitos plumitivos que escreveram sobre o tema tivessem perguntado ao CEIS20, ou a alguns dos seus membros, poderia ainda detalhar que as unidades museológicas que desejam abordar “figuras históricas” (e espaços e períodos históricos) a que se refere o Presidente da Câmara seriam ou pretendem vir a ser: um “Centro de Interpretação da Primeira República/Casa-Museu de António José de Almeida”, em Vale da Vinha (S. Pedro de Alva – Penacova); a musealização da casa de Aristides de Sousa Mendes, há tanto tempo projectada e adiada, em Cabanas de Viriato (Carregal do Sal); um centro memorial a Afonso Costa, em Seia; um Centro de Interpretação dos espaços sanatoriais de anti-tuberculose no Caramulo (Tondela); o referido Centro Interpretativo do Estado Novo em Vimieiro, Santa Comba Dão; e ainda — se possível — vir a propor e a apoiar a formação de espaços de memória referentes a Tomaz da Fonseca, em Mortágua, e às figuras de Alberto Veiga Simões, Alberto Moura Pinto e Fernando Vale, em Arganil.
Obviamente que quem lida com a História com rigor e objectividade, utilizando os documentos (de toda a espécie), jamais seria capaz de criar um museu hagiológico sobre Salazar. E nem sequer se deve aludir à falta de fontes museológicas, porque, a par daquelas que existem em Santa Comba, há inúmeros meios para falar com complexidade da história do Estado Novo, Estado “fascista à portuguesa” (como correntemente lhe chamo), “fascismo sem movimento fascista” (como o apelidou o sociólogo Manuel de Lucena), “fascismo de cátedra” (designação de um notável artigo do filósofo Miguel Unamuno) ou Estado essencialmente repressivo, com a “arte de saber durar”, como têm provado os meus colegas Fernando Rosas e Irene Pimentel. Pode recorrer-se — como se sabe — aos mais diversos meios museológicos, como tem experimentado o Museu do Aljube. E já não falo do que se poderá vir a fazer no forte de Peniche (em cuja musealização o CEIS20 tem colaborado, através de Avelãs Nunes) ou, em Cabo Verde, no Tarrafal (Santiago), em que os museólogos cabo-verdianos e portugueses poderiam fazer muito mais do que está feito.
Francisco Bethencourt, em artigo do PÚBLICO, falou do renascimento da extrema-direita (que a todos preocupa), aproveitando — parece que vem sempre ao de cimo a “ficção” — para falar também do “Museu Salazar”! A este propósito diz que “meia dúzia de objectos pessoais de um ditador não qualificam […] um problema político grave”. Deveria, na qualidade de historiador, ao menos, conhecer melhor os documentos, para se aperceber o que, na verdade, se pretenderá realizar. E acrescenta: “Na Alemanha ninguém se atreveria a propor um museu de Hitler ou em Itália um museu de Mussolini; seria claramente anticonstitucional”. É certo que é assim, mas não deixa de ser curioso que a casa de Mussolini em Predappio tenha sido restaurada pela Comuna para ali se realizarem exposições temporárias, algumas sobre temas do fascismo. Quanto a Hitler, a casa onde nasceu, em Braunau am Inn (na Áustria), também se encontra de pé e bem conservada, sem qualquer sentido museológico, mas foi restaurado o “Ninho da Águia” nos Alpes bávaros, sem que isso fosse considerado uma afirmação anticonstitucional e neonazi. E, deve notar-se que, além dos campos de concentração serem excelentes museus para se entender o Holocausto e por ele manifestar o horror, a Alemanha aceitou transformar o que resta do palácio de congressos de Nuremberga, onde se realizaram os tristemente famosos encontros do Partido Nazi, num moderno centro de documentação, onde se recorda o triste passado hitleriano e se abre sobretudo a jovens estudantes, para que não mais se esqueçam dessa história terrível.
Esteja certo, Francisco Bethencourt, que se algo surgir no Vimieiro, terá a forma e o conteúdo de um dos museus que pretende: um projecto “de reflexão sobre património, história e civilização”. Se aparecer alguma vez a ideia de se constituir um “Museu Salazar”, como refere, os investigadores do CEIS20 recusarão essa ideologia anticientífica — como eu recusei em tempos idos —, assim como recusarão qualquer projecto hagiográfico relativamente a alguma outra figura da história. O papel do historiador é sempre desmistificar através do uso de documentos, não mais permitindo que a História se transforme em “Estória”.