Nuno Cardoso: “Queremos tornar a programação do Teatro São João um todo orgânico, que não é fácil mas user friendly

O director artístico do Teatro Nacional São João justifica as linhas programáticas da nova temporada, explica a importância dos dramaturgos em destaque, Georg Büchner e Mark O’Rowe, e anuncia um novo ciclo para o início de 2020, O Olhar de Ulisses.

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Nuno Cardoso, director artístico do Teatro Nacional São João Adriano Miranda

Nuno Cardoso (n. Canas de Senhorim, 1970) é, desde o início deste ano, director artístico do Teatro Nacional São João (TNSJ), cargo em que sucedeu a Nuno Carinhas. A sua primeira programação para a instituição foi apresentada ao final da tarde desta sexta-feira, na presença da ministra da Cultura, Graça Fonseca, e do seu homólogo cabo-verdiano, Abraão Vicente. Horas antes, explicou ao PÚBLICO como pensou os próximos meses do TNSJ. 

Esta vai ser verdadeiramente a primeira temporada com a sua assinatura. Que marca quer deixar com esta programação?
Esta temporada ainda é mestiça, porque o Nuno [Carinhas] deixou muito trabalho preparado até Dezembro. Por isso, nestes seis meses, só os últimos três têm mais a minha marca. Por outro lado, também é uma costura feita pelos dois, porque a temporada abre com A Morte de Danton, uma criação minha, mas programada pelo Nuno. Esta programação é um momento de transição, mas também de companheirismo com o Nuno. O que mais se poderá ler será, talvez, o incremento do TNSJ em digressão: vamos a Braga, Aveiro, Lisboa, Almada; e a sua internacionalização, com Cabo Verde, a Roménia e também Madrid, um movimento que se espera que continue.

Isso vai acontecer porque há finalmente condições para tal, ou resulta de uma nova política?
É uma decisão de política de programação, que tem por trás um conjunto de circunstâncias que permitem essa circulação. Ela não se faz só com as nossas produções, mas também com as dos nossos co-produtores: também vamos estar na Noruega, em Bergen, com o Vão, de Vasco Gomes [14 de Setembro]. Outro traço distintivo é a afirmação de que o São João tem de crescer como parceiro privilegiado das companhias. Outro ainda é o labor que temos posto no Centro Educativo. É algo que já existia, mas está agora cada vez mais presente, essa ideia de tornar a programação do TNSJ num todo orgânico, acessível, que pode ser facilmente lido pelo público, o que lhe permite não diria rejuvenescer-se, porque isso não é verdade, mas tornar-se ainda mais aberto. E também essa ideia de que o TNSJ está no Porto, é do Porto, mas também é nacional, está em todo o lado.

O programa inclui também várias produções internacionais…
Outra tradição do TNSJ, não esquecida, mas pouco clarificada. A partir de Janeiro, em antecipação ao centenário, abrimos um programa chamado O Olhar de Ulisses, que nos traz criações de companhias e criadores estrangeiros que virão pendularmente ao São João, trazendo outras vozes e outras formas de fazer teatro, seja ele de reportório, seja ele inclassificável. A expressão O Olhar de Ulisses (título de um filme do grego Theo Angelopulos) define o olhar distanciado de um viajante que de repente tem outros olhos para com a realidade. Achamos que era um título interessante para olhar de novo a Europa e o mundo neste tempo fracturado, pedindo emprestada a expressão de Ulisses, mas também, paradoxalmente, os olhos de Homero… que são cegos. Mas a ideia central é tornar a programação um todo orgânico que não é fácil mas é “user friendly”.

No texto de apresentação da temporada, enuncia quatro temas: Revolução, Géneros, Margens, Viagem. O que os liga?
São temas fracturantes e que, de algum modo, circunscrevem a actualidade. São temas de política profunda – ontem [quinta-feira], vendo algumas notícias sobre o “Brexit” e sobre a rebelião dos “Tories”, quase pensei que estávamos a viver um período pré-revolucionário. Vivemos um ressurgimento de discursos que suscitam os nossos piores demónios, e não os nossos melhores anjos. Por outro lado, a questão dos costumes é cada vez mais fracturante nas sociedades ocidentais; ela põe em causa todo o nosso cimento social. E a questão do género é super-importante, não só a da escolha do género, mas também a da desigualdade de género. A viagem é o tema base do pensamento – quase todos os textos matriciais da sociedade ocidental são assentes numa viagem, seja ela a caminho de casa, seja à procura do amor no inferno. Tudo é uma viagem – não é por acaso que o Joyce pega no Ulisses… E a margem é a discussão social fundamental. Porque há um trânsito da margem para o centro, que não a resolve, simplesmente a estreita, como diz o Brecht. Portanto, de alguma forma, a programação enquadra-se nessas chaves de leitura. Que não são as únicas, há outras. É um esforço para criar uma organicidade, uma identidade que já é reconhecível no São João. Sempre foi, mas deve tornar-se mais vincada.

Georg Büchner e Mark O’Rowe são dois dramaturgos em destaque. Que lugar ocupam na história da dramaturgia ocidental?
O Büchner – estou com ele na mão – é o alfa e o ómega da dramaturgia ocidental. De A Morte de Danton, diz-se que foi a entrada mais fulgurante de um dramaturgo. Ele antecipa tudo: quebra a forma, antecipa estilos, é absolutamente feroz na maneira poética e vanguardista – antes de haver vanguarda – como escreve, e antecipa tudo o que é o teatro contemporâneo. Por outro lado, é de um fulgor profundamente humano em relação a estes momentos de absoluta fractura que nos basculam a todos. O Mark O’Rowe é um olhar clínico para a pequena-grande tragédia da intimidade, e é também um contemporâneo. Os dois estabelecem dois pontos paralelos atravessados pela nossa sociedade. É engraçado que o Schopenhauer, na época do Büchner, disse que “a Humanidade era trágica na sua totalidade e cómica no pequeno acontecimento”. Há 30 ou 40 anos, antes de O'Rowe ter começado a escrever, o Chaplin disse que “a Humanidade é incrivelmente cómica na sua totalidade e profundamente trágica na sua pequenez”. Estes dois dramaturgos têm escalas e importâncias diferentes na dramaturgia ocidental, mas são bóias de orientação que, se quisermos, nos permitem pensar.

Pode antecipar-nos o que vai ser a sua A Morte de Danton?
São tantos anos com ele às costas… Li pela primeira vez esse texto no [café] Moçambique, em Coimbra, quando tinha 18 anos. Mas, neste momento, o que sinto é uma frase do Büchner, da peça: “A nossa vida é um assassínio por força do trabalho”. Aliás, são constantes as citações que me vêm à boca, desde a que está por aí, “Hoje tudo é feito de carne humana”, até “A vida é uma puta; fornica com o Universo inteiro”… O Büchner é, com alguns poucos ao longo da história da Humanidade, um visionário inconsciente consciente, que nos abre, tal como uma revolução, uma fractura, e altera tudo.

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