Catarina, a grande social-democrata
Porque é que um conceito que nunca foi explicitamente afirmado como matriz ideológica surge agora, de rompante, no debate público? A resposta é muito simples: eleitoralismo.
Catarina Martins, em entrevista concedida ao jornal Observador, disse que o programa do BE é “social-democrata”. As diferenças e semelhanças entre o socialismo e a social-democracia são conhecidas, sendo a mais importante diferença entre ambos o carácter evolucionista ou gradualista da social-democracia, que contrasta com o fervor revolucionário dos “verdadeiros socialistas”. Pouco tempo depois da Revolução Russa de 1917, os sociais-democratas europeus abandonaram a crença socialista de que a democracia liberal capitalista é uma espécie de ofuscação ou fachada do domínio burguês dos meios de produção. Sim à regulação benevolente da ordem capitalista e não à revolução socialista (e totalitarista), proclamaram os seus arautos. Bernstein, principal ideólogo da social-democracia germânica, acreditava que o capitalismo não estava condenado ao fracasso e que havia conseguido resolver satisfatoriamente as suas duas mais debilitantes contradições: a desigualdade e o desemprego (!?). As afinidades e as tensões ideológicas entre o socialismo e a social-democracia são interessantes e merecedoras de análise cuidada pelos filósofos políticos mas não é este o assunto que me traz aqui.
As declarações de Catarina Martins ao jornal Observador induziram uma experiência deveras enriquecedora, que agradeço efusivamente à coordenadora-mor do BE. Procurei incessantemente por declarações públicas, programas políticos, propostas e textos de fundamentação ideológica onde os iluminados líderes do BE invocaram ou afirmaram a social-democracia como inspiração filosófica. Quantas vezes foi o conceito mencionado nos ditos textos e actos discursivos? Nunca, até ao dia em que Catarina foi entrevistada pelo mais eminente jornal da direita portuguesa. Uma coincidência cósmica, certamente.
Tal facto não é surpreendente porque pessoas como Fernando Rosas, Miguel Portas, Francisco Louçã Luís Fazenda e muitos outros e outras jamais desejariam ser confundidos com os sociais-democratas portugueses que, convenhamos, com a notável excepção de Sá Carneiro, nunca foram verdadeiros sociais-democratas apesar de se afirmarem como tal. Encontrei, todavia, vários artigos no Esquerda Net onde o gradualismo comprometido da social-democracia contemporânea é ferozmente criticado. A que se deve esta inesperada aparição do conceito na comunicação política do BE? Porque é que um conceito que nunca foi explicitamente afirmado como matriz ideológica surge agora, de rompante, no debate público? A resposta é muito simples: eleitoralismo. Há que amenizar a percepção pública do BE como um partido radical. Quiçá, suponho eu, talvez até seja possível convencer alguns milhares de professores, enfermeiros, polícias, médicos e até alguns motoristas sociais-democratas a votar no BE.
Suspeito que a estratégia discursiva do BE nestas eleições venha a ser estudada durante anos nos departamentos de “Ciência” Política de várias universidades. Constará, certamente, na secção curricular dedicada ao estudo da demagogia política e à análise da utilização da “ambiguidade constructiva como instrumento semiótico de persuasão. É assim que se “entra para a história.” De rompante. Bergson tinha razão. A memória não é uma narrativa cronológica mas uma sequência de “intensidades”.