Quem tem medo do museu Salazar?
Não está em causa um museu sobre Salazar, mas uma iniciativa que tem todo o ar de devoção a uma ditadura cujas marcas ainda hoje persistem.
O principal e único problema do dito centro interpretativo do Estado Novo que a Câmara de Santa Comba Dão quer construir não se detecta à superfície nem se explica no texto da petição que pede ao Governo para o proibir. O maior perigo dessa iniciativa está na condescendência bairrista com que o ditador vai ser tratado. Tudo o que o autarca (socialista!) de Santa Comba tem dito veladamente é que a terra tem o dever de homenagear os seus “grandes homens” ou os seus “estadistas”. E ao fazê-lo nos espaços da infância de Salazar, no microcosmo rural e bafiento que vai da escola primária à capela ou ao cemitério, só nos resta uma expectativa sobre o que pode ser esse “centro interpretativo”: uma homenagem branqueadora e normalizadora de Salazar num ambiente dominado pelos valores tacanhos que sempre defendeu.
Ao contrário do que o discurso inflamado da petição contra o museu proclama, o país só teria a ganhar com um museu de Salazar ou do Estado Novo – ou da Primeira República, ou dos Descobrimentos ou de qualquer outra personagem ou era relevante da nossa História. Nas democracias não pode haver temas tabus, personagens apagados das fotografias ou lugares de esquecimento. Essa pulsão dos extremos da política que defende a censura de qualquer opinião ou ideologia que não seja a sua, é deplorável. A haver um museu de Salazar ou do Estado Novo, teria de obedecer a uma visão aberta da História – algures entre Rui Ramos e Fernando Rosas. Deveria falar da estabilização do país após o caos da República e da repressão, da neutralidade na II Guerra e da guerra colonial, da exaltação nacionalista e da condenação do país ao atraso. Um museu não é uma hagiografia; tem de ser um espaço de verdade.
Nada disso parece garantido com a tentativa de fazer de Salazar um recurso para o “desenvolvimento” de Santa Comba. O Tarrafal, a PIDE ou o cardeal Cerejeira só vendem aos saudosos desse país anacrónico e brutal. A revisitação do Estado Novo, desse Portugal pobrezinho, resignado e feliz do interior será um excelente pretexto para se erigir um lugar de santificação da memória salazarista, mesmo que o salazarismo não tenha entre nós o poder que, por exemplo, Franco tem em Espanha. Protestar contra esta iniciativa (mais para convencer o autarca de Santa Comba do que para fazer queixinhas ao primeiro-ministro, como a petição) é por isso um dever. Não porque em causa está um museu sobre Salazar, mas porque a iniciativa tem todo o ar de devoção a uma ditadura cujas marcas ainda hoje persistem.