Um país inteiro contra os motoristas

Nunca como hoje o Governo, os partidos da esquerda, os partidos da direita, a imprensa e até o Presidente de República se colocaram de forma tão clara e deliberada do mesmo lado da barricada. Nunca um sindicato, uma luta laboral e uma classe profissional foram tão ostensivamente isolados e censurados como nesta greve.

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LUSA/Mário Cruz

O país chegou ao terceiro dia de greve e confrontou-se com uma inevitabilidade: a desobediência civil dos motoristas de transportes de matérias perigosas, o descontrolo dos seus sindicalistas e a cabeça perdida do seu porta-voz. Face a tudo o que tinha acontecido até agora, a completa ausência de válvulas de escape para a tensão que se foi acumulando só poderia redundar numa derrota completa dos motoristas ou na sua radicalização. Aconteceu a segunda via e, como hoje se escreveu neste espaço, o país está confrontado com uma realidade nova. No futuro próximo, nada será como antes nas relações da política com os conflitos laborais.

Ninguém sai isento de culpas em todo este processo, mesmo que tenhamos de aceitar que o papel dos sindicatos é lutar pelas melhorias de condições de vida dos seus trabalhadores, ou que o Governo tem de fazer tudo o que tiver de ser feito para evitar perturbações graves na vida pública. O que foi e é absolutamente novo neste conflito é o completo desequilíbrio na relação de forças entre as partes. Nunca como hoje o Governo, os partidos da esquerda, os partidos da direita, a imprensa e até o Presidente de República se colocaram de forma tão clara e deliberada do mesmo lado da barricada. Nunca um sindicato, uma luta laboral e uma classe profissional foram tão ostensivamente isolados e censurados como nesta greve.

Que há em toda esta luta tiques de arrogância dos sindicatos, uma vontade de provocar os poderes públicos até à impaciência e uma intransigência negocial absurda que convida a desprezar os sindicalistas e os seus porta-vozes, poucos duvidam. Mas nunca como hoje se criou um unanimismo tão cínico nem um clima de consenso tão pérfido em torno de um conflito. Tal como se em causa estivesse uma ameaça externa, a política esvaziou-se em nome do ataque a um inimigo partilhado pela esquerda, pela direita, pelo Governo, pelas oposições e, na sequência de uma campanha de propaganda digna de outros regimes, da maioria dos cidadãos. 

Muito mais do que pelas óbvias culpas próprias ou pela determinação do Governo, o que isola os motoristas e os convida ao radicalismo desesperado é essa legítima sensação de serem ao mesmo tempo vítimas do tacticismo cobarde do Bloco e do PCP, da incompetência espúria do PSD e do CDS e da paz podre que o Presidente se esforça por promover. Um clima assim tão mansamente unívoco pode seguramente servir ao PS e enterrar a arrogância dos motoristas. Mas não existe uma democracia saudável com tão falsos consensos nem com tão manipulados compromissos.

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