Bola-de-berlim, um bolo com queda para a praia

A bola-de-berlim faz parte do ritual de praia de muitos portugueses. Desde quando? Há memória deste doce nas praias da linha de Cascais ainda na primeira metade do século XX, graças a refugiados judeus.

,Rosquinha de cidra
Fotogaleria
Regina Coelho
Berlinense
Fotogaleria
Regina Coelho
Fotogaleria
Rui Gaudencio
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Andreia Gomes Carvalho
Fotogaleria
Andreia Gomes Carvalho
Fotogaleria
Andreia Gomes Carvalho
Fotogaleria
Andreia Gomes Carvalho

O comboio com destino ao Porto estava prestes a partir. O barulho do motor a ganhar energias enchia a estação de Santa Apolónia, em Lisboa, quando Ana Ormond dá a volta à chave que abre a Berlineta. Na loja desta estação, não se usam as lambretas que dão nome à marca que vende “as originais bolas-de-berlim”, como diz o slogan, mas foi com elas que começou o negócio das bolinhas.

Ana ter-se-ia posto a rechear e vender bolas-de-berlim se o PÚBLICO não a convidasse a conversar um pouco, longe do barulho. Conta que pontos como este, de onde partem e chegam pessoas, são muito bons para o negócio. “Há pessoas que comem uma bola todos os dias, religiosamente. São os clientes habituais e que curiosamente pedem sempre o mesmo sabor.”

Foto
A loja da Berlineta na estação de Santa Apolónia, em Lisboa Andreia Carvalho

A Berlineta surgiu em 2014, da cabeça de Alessandro Iuliano, que, quando era mais novo, ganhava uns trocos a vender bolas-de-berlim na praia. Para além das bolas tradicionais, a marca reinventa este bolo com massas como beterraba, alfarroba, erva-doce e canela. Parte do segredo está na massa: “leva farinha, seja de trigo, alfarroba, coco; água e, às vezes, corante vegetal. Nas bolas vegan, nada de vestígio animal, nada de leite, ovos, margarina”, elenca a responsável.

Ana e Alessandro não são pasteleiros, mas compensam em criatividade. Mal têm uma ideia, consultam o pasteleiro. Se for possível, a bola nasce. Na altura do Arraial Lisboa Pride, a Berlineta trouxe para as montras das lojas uma bola-de-berlim roxa (farinha de açaí) com recheio azul (creme de spirulina).

Tenta-se responder às necessidades de todos: “Ao longo do ano, os clientes foram pedindo bolas vegan e agora já as temos em sete sabores de massas e dez cremes”, relata Ana Ormond. Carvão activado, pistácio, limão, laranja — este ano, levaram também sabores vegan até às praias da Caparica e Carcavelos.

Foto
Andreia Carvalho

Trazer a pastelaria para a praia

Não são poucas as pastelarias que, à semelhança da Berlineta, vendem este bolo junto ao mar. A marca lisboeta chega a vender mil bolas de massa frita por dia no Verão, o dobro do que no Inverno. A questão é: porque gostamos de comer este bolo frito, potencialmente gorduroso, e coberto de açúcar, em pleno areal?

Frederico Duarte, juntamente com Rita João e Pedro Ferreira (Estúdio Pedrita), escreveu o livro Fabrico Próprio, que faz parte de um projecto multidisciplinar sobre o design da pastelaria semi-industrial portuguesa. Desde 2005 que estes designers investigam este tipo de pastelaria e a bola-de-berlim foi um dos 92 bolos que incluíram naquele que é muito mais que um catálogo de bolos.

No livro, incluíram um capítulo ligado aos vendedores de bolas-de-berlim na praia. E porque são tão populares na praia? “A conclusão a que chegámos foi que este é o único bolo, de todos os que vimos no país, que é frito e que não vai ao forno. Isso quer dizer que o tempo de passar do cru a passível de ser servido é muito curto”, explica Frederico.

Enquanto escreviam o livro, os pasteleiros do Algarve explicaram-lhes que, assim, conseguem oferecer bolas frescas rapidamente e que isso ajudou à aceitação das bolinhas na praia. Frederico continua: “Conseguimos fazer esse movimento pendular entre a praia e a fritadeira. Com mais nenhum bolo conseguimos fazer isso. E isso foi importante para perceber porque é que a bola-de-berlim vingou tanto.”

Outras explicações passam pelo contraste entre o sal e o açúcar – saímos da água do mar com os lábios salgados e o doce do bolo corta esse sabor – ou, simplesmente, a vontade de comer algo calórico num dia de sol.

A história sombria da bola-de-berlim

A bola-de-berlim tornou-se num dos lanches predilectos dos portugueses em contexto de praia. Para explicar esta afinidade, temos de recuar ainda mais. ​Há, na realidade, um passado negro por detrás da chegada desta bola de massa frita a Portugal.

Com a ascensão do nazismo, um dos países que mais refugiados judeus acolheram foi Portugal. Salazar manteve o país fora da Segunda Guerra Mundial, o que permitiu a vinda de milhares refugiados de guerra, que começaram a chegar a Lisboa na sequência da perseguição.

No seu livro, Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial, a historiadora Irene Flunser Pimentel não deixa de referir as bolas-de-berlim. Conta ao PÚBLICO que entre os judeus alemães que fugiram estava a família Davidsohn e que com eles veio a receita para o bolo, que na Alemanha toma vários nomes. Apesar de em Berlim o bolo se chamar Pfannkuchen na maior parte do país é conhecido como berlinner – mais próximo do nome português, ou, mais a sul, krapfen.

Este nome, aliás, já proporcionou momentos colectivos engraçados. Em 1963, num caricato discurso do presidente americano John F. Kennedy em Berlim ocidental, este proclamava: “Ich bin ein Berliner”. Era suposto traduzir-se como “Eu sou um berlinense”, mas, na verdade, estava mesmo a dizer “Eu sou uma bola-de-berlim”, já que era isto que significava fora de capital alemã.

De regresso a terras lusas: no livro da historiadora, lê-se que no dia 6 de Outubro de 1935 chegavam a Portugal Ruth Davidsohn, a irmã e os pais, vindos de Hamburgo, do norte da Alemanha. A escolha de Portugal como destino para o exílio, explica-se pelo facto de os Davidsohn já terem família em terras lusas – os tios Lily e Hugo Losser, que trabalhava na importação de máquinas automáticas de chocolates. Mas “a existência de um acordo luso-alemão que dispensava vistos nos passaportes de cidadãos dos dois países, desde 1926”, foi determinante. Irene Pimentel chegou a esta história graças à socióloga alemã Christa Henrichs, que partilhou com a historiadora portuguesa várias entrevistas a refugiados antinazis. Parte do resultado pode ser visto no documentário Lisboa – Porto de Esperança, que a Christa ajudou a realizar.

Foi a mãe de Ruth Davidsohn que começou a fazer bolas caseiras – é aqui que, no livro de Irene Pimentel, termina a parte mais negra da história da bola-de-berlim. Por esta altura, conta-nos a historiadora, os refugiados judeus enchiam as praias de Lisboa por causa do calor. Não há fontes que liguem directamente estes dois fenómenos, mas confirma-se que houve uma troca cultural marcante: “É muito engraçado porque os refugiados aprenderam a comer sardinhas e bacalhau, e o cosmopolitismo advém da presença deles em Portugal.”

Confeccionaram-se mais e mais bolas-de-berlim. A receita alterou-se. Na adaptação portuguesa, o bolo pode ser recheado com creme de pasteleiro, amarelo por levar tantos ovos – “uma originalidade portuguesa”, assegura-nos a historiadora. A versão de origem, a berlinense, não deixa ver o recheio porque na massa era injectada uma compota de fruta, “geralmente de morango ou framboesa”, acrescenta Irene Pimentel.

Eis a história de como a bola-de-berlim passa a fazer parte do reportório culinário português, e paralelamente foi-se consolidando o hábito de comer este bolo nas praias. Enquanto aprofundavam os conhecimentos que viriam a compor o livro Fabrico Próprio, Frederico Duarte e os colegas falaram com Maria de Lourdes Modesto, um dos mais importantes nomes da culinária nacional. A “diva da gastronomia portuguesa” contou-lhes a lembrança que tinha de comer bolas-de-berlim nas praias da linha de Cascais, em Lisboa, já em 1940. Sobre quando é que este bolo passou a “ir mais à praia” sabe-se pouco, mas é fácil de ver que a bolinha frita está a cobrir cada vez mais território.

Foto
Ana Banha

A bola para além de Lisboa (e da praia)

Com a pesquisa para o livro, Frederico Duarte apercebeu-se de que comer bolas-de-berlim era “um fenómeno ainda muito de Lisboa para sul”. Se no Porto não havia tradição de comer bolas-de-berlim, a “globalização” (ou gulodice) já se encarregou de mudar isso.

Isabel Câmara, fundadora da empresa Bolas da Praia, admite que em território algarvio “sempre houve mais bolas-de-berlim”, mas que o Porto já não fica de fora. A empresária aventurou-se no negócio da venda deste bolo em 2012, juntamente com uma sócia. O objectivo era levar as bolas-de-berlim que se encontravam na praia a toda a cidade. “Nunca vendemos na praia nem pusemos um pé na areia. A ideia foi levar esse conforto de comer uma bola a quem está nos escritórios”, explica Isabel.

A Bolas da Praia também faz chegar bolas-de-berlim às empresas de Lisboa. E é na capital que mais clientes tem — Lisboa encomenda-lhes o triplo dos bolos que o Porto. Em ambas as cidades, as bolas vêm dentro de um saquinho às riscas azuis e brancas, “que fazem lembrar as barraquinhas da praia”, descreve a fundadora da empresa.

Hoje, encontra uma bola-de-berlim seja onde for. A dificuldade, agora, já não está em decidir se vai com creme ou sem creme, mas sim com que novo sabor.

Editado por Luís J. Santos

Sugerir correcção