O Irão e a armadilha de atacar a navegação no Golfo Pérsico
Ao ameaçar a navegação no Golfo Pérsico o Irão está a cair na armadilha de crescentemente ser visto, não penas pelos seus inimigos, como um perturbador da estabilidade e liberdade de navegação internacional. E esta crise cruza-se com as ambições políticas dos candidatos à sucessão de Theresa May, Jeremy Hunt e Boris Johnson.
1. Nos últimos meses, as tensões políticas e militares entre os EUA e o Irão aumentaram drasticamente. Na sua génese está a saída dos EUA, em 2018, do acordo do P5+1 (EUA, França, Reino Unido, Rússia e China e Alemanha) sobre o programa nuclear iraniano. Para o Irão, neste contexto de aumento de tensões e ameaças, atacar, de forma dissimulada ou aberta, navios da marinha mercante que circulam no Estreito de Ormuz parece ser uma boa estratégia. A rota do Golfo Pérsico é particularmente importante no comércio mundial de petróleo. A sua perturbação tem efeitos imediatos no abastecimento energético, nos preços do petróleo e na economia mundial no seu todo. E o aumento dos preços do petróleo é bom para a debilitada economia iraniana, a qual se tem ressentido fortemente das sanções dos EUA.
Ao apreenderem a 19 de Julho o navio petroleiro Stena Impero, que navegava com a bandeira britânica no Estreito de Ormuz — a pretexto de ter colidido com um barco de pesca —, os Guardas da Revolução iranianos quiseram mostraram o seu poder e a sua capacidade de retaliação aos inimigos da República Islâmica. Em especial aos britânicos que, nesse mesmo dia, prolongaram a detenção de um navio petroleiro feita a 4 de Julho ao largo de Gibraltar (o Grace 1, que navegava com a inscrição “Panama” no casco, mas já tinha perdido o registo nesse país a 29/5, sendo de facto iraniano), por suspeita da violação das sanções europeias sobre a exportação de petróleo para a Síria, após uma informação e pedido dos EUA nesse sentido.
2. Com esta actuação, o Irão pode ter cometido o seu maior erro estratégico desde que os EUA abandonaram o acordo do P5+1. É necessário perceber que o desfecho da crise do nuclear iraniano se joga em vários campos: na opinião pública mundial; nos apoios internacionais que o Irão conseguir mobilizar para a sua causa; e, em especial, na vontade dos restantes membros do P5+1 se manterem ligados acordo sobre o programa nuclear efectuado em 2015, viabilizando também, na prática, os ganhos económicos e políticos expectáveis para o Irão.
Mas ao ameaçar a navegação no Golfo Pérsico o Irão está a cair na armadilha de crescentemente ser visto — e não apenas pelos seus rivais e inimigos do Conselho de Cooperação do Golfo, em especial a Arábia Saudita, aos quais se junta Israel — como um perturbador da estabilidade e liberdade de navegação internacional. Os casos dos anteriores navios petroleiros que, em Maio e Junho deste ano foram atacados e danificados, com acusações da autoria dos Guardas da Revolução iranianos (negadas por Teerão), ganham provavelmente agora maior plausibilidade. Nessa altura, foram atacados navios que navegam sob bandeira de diversos países: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Noruega e Singapura, nem todos pertencentes a Estados com más relações com o Irão, como é o caso dos dois últimos. Mas o resultado de tudo isto é criar um ambiente internacional favorável a retaliações político-económico-militares de maior ou menor envergadura, para os Estados que já estão propensos a fazê-lo. Essa engrenagem já está em marcha, se não for travada em breve.
3. Ao intensificarem uma frente directa de conflito com os britânicos, os iranianos podem estar a dar, eles próprios, um tiro no acordo do P5+1 que lhes interessaria conservar, o mais possível, após a saída dos EUA.
É verdade que esta crise ocorre também num momento politicamente delicado e de fragilidade para os britânicos. A primeira-ministra Theresa May está de saída. Irá suceder-lhe ou Boris Johnson, até agora largamente favorito, ou Jeremy Hunt, o actual ministro dos Negócios Estrangeiros britânico. Assim, esta crise com o Irão cruza-se com as ambições políticas dos dois candidatos à sucessão de Theresa May chefiarem o governo britânico. A forma como Jeremy Hunt lidar com o caso do Stena Impero poderá ser um trunfo importante, ou então enterrará definitivamente as suas ambições.
Por sua vez, quanto a Boris Johnson, se chegar a primeiro-ministro com o navio petroleiro Stena Impero ainda nas mãos dos iranianos, será provavelmente tentado a endurecer a posição britânica, alinhando-a pelas políticas de Donald Trump face ao Irão. São conhecidas as simpatias entre ambos e essa política mais dura será provavelmente do agrado do eleitorado pró-"Brexit”, que, em geral, é também o mais favorável a uma relação especial com os EUA.
Para já, na questão nuclear do Irão, os britânicos têm mantido uma posição similar à dos restantes europeus (França e Alemanha) e de outras potências que se mantêm no acordo (Rússia e China), nomeadamente na procura de alternativas às sanções económicas dos EUA. Todavia, como notado, o prolongar no tempo da crise do petroleiro Stena Impero — e a entrada de uma nova chefia no Governo britânico — podem mudar tudo. Os próprios britânicos poderão passar a aplicar sanções económicas ou até acabar por abandonar o acordo nuclear de 2015, tal como os norte-americanos fizeram.
4. Um outro aspecto importante nesta questão é o de que a instabilidade da navegação no Golfo Pérsico prejudica também outros Estados que têm uma boa ou razoável relação com o Irão. É necessário ter em conta que muito do petróleo que hoje passa por essa rota marítima se destina às economias situadas na Ásia. A China, por exemplo, pode ser um caso maior desse efeito colateral das acções iranianas perturbadoras da navegação e do preço da energia. Os chineses não têm nada a ganhar com a subida de preços do petróleo nos mercados mundiais pois são, nesta altura, um dos maiores importadores.
Assim, o efeito de insegurança e de prejudicar o abastecimento de energia tem também um impacto negativo em muitos Estados que poderiam até apoiar o Irão, ou, pelo menos, ser compreensivos no conflito com os EUA ligado ao seu programa nuclear. Ironicamente, os EUA, que são o inimigo directo que Teerão quer atingir, são bem menos afectados. Nos últimos anos, os norte-americanos tiveram um extraordinário acréscimo da sua produção petrolífera tendo voltado ao topo mundial. E sua indústria de shale oil também ganha com a subida dos preços.
Mas a projecção dos danos das acções iranianas sobre outros Estados, ainda que indesejada, é amplificada pelo facto de a navegação comercial ser uma actividade amplamente internacionalizada. Um navio pode navegar sob a bandeira de um Estado, ser propriedade de uma empresa de outro Estado, a sua mercadoria ser de terceiros e o capitão e a sua tripulação serem ainda de vários outros Estados. É um caso bastante comum na navegação comercial e no transporte marítimo de petróleo. Isso foi, aliás, o que aconteceu com alguns dos navios petroleiros que sofreram ataques em Maio e Junho no Golfo Pérsico. É o que acontece agora também com o Stena Impero: é propriedade da empresa Stena Bulk da Suécia e a tripulação é composta por russos, letões, filipinos e indianos. Ou seja, os interesses afectados vão muito além dos britânicos. Na prática, esses ataques à navegação comercial do Irão fazem-lhe perder apoio na opinião pública internacional e aumentar a percepção de que é um Estado problemático e tem de ser contido, a bem ou a mal.
5. Nesta altura, é impossível prever as consequências de mais esta crise no Golfo Pérsico, nas suas múltiplas facetas e ramificações. Poderá, no cenário mais optimista, ser resolvida através de uma negociação diplomática entre britânicos e iranianos, envolvendo, também, o navio petroleiro de bandeira iraniana apreendido em Gibraltar. Se for assim, acabará sem consequências de maior.
Mas poderá também, como já notado, amplificar a crise internacional e levar ao fim do acordo nuclear de 2015, do P5+1, abrindo caminho a uma escalada nas acções político-económico militares. O Irão — em especial os seus Guardas da Revolução que são uma espécie de “Estado dentro do Estado” —, pode achar que mostra assim a sua força, ou, pelo menos, que não tem muito a perder com acções deste tipo. Mas é um erro de cálculo. A situação pode tornar-se bem pior para os iranianos. Para os que o vêem como inimigo e acham que é um perturbador do Médio Oriente e do mundo — é a imagem em Israel e na grande maioria dos seus vizinhos árabes —, é altura de o Irão “levar uma lição”. Nos EUA, um Presidente como Donald Trump com um conselheiro Segurança Nacional com a visão do mundo e do Irão de John Bolton, são aliados (quase) perfeitos.
Quanto aos iranianos, ao atacarem de forma aberta ou camuflada a navegação no Golfo Pérsico, estão, como já notado, independentemente das suas intenções, a prejudicar os interesses de muitos outros Estados numa actividade que é largamente multinacional. A consequência poderá ser criar o contexto/pretexto ideal para uma retaliação militar da qual a população iraniana será provavelmente a maior vítima.