Jogos de guerra no Golfo Pérsico
Nos próximos meses ou anos veremos qual o futuro do acordo nuclear de 2015. Para já, os europeus pensam poder ainda salvá-lo, com a China e a Índia. Mas nesta altura, não parece que as acções diplomáticas sejam magia europeia suficiente para contrariar os jogos de guerra dos EUA e Irão no golfo pérsico, dos quais os europeus são meros espectadores.
1. Os jogos de guerra voltaram ao Golfo pérsico. Em 2015, um dificílimo acordo foi alcançado entre o Irão e o P5+1: EUA, França, Reino Unido, Rússia e China e Alemanha — todos membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com excepção desta última. Parecia ter-se encerrado uma grave crise internacional ligada ao programa nuclear iraniano. Nos anos anteriores, a troca de ameaças entre Israel e o Irão, mas também entre o Irão e os EUA durante o segundo mandato de George W. Bush, tinham feito recear o pior. Para o P5+1, incluindo o governo norte-americano de Barack Obama, tratava-se de um bom acordo. Afastava a possibilidade de Irão usar o seu programa de pesquisa e desenvolvimento nuclear para fins militares.
Ao mesmo tempo, para o Governo do Irão, também era um bom acordo pelas compensações que obteria no terreno económico. Facilitaria um descongelamento dos seus activos nos EUA (ICJ: Iran bid to recover billions in frozen US assets can proceed in DW), ao qual o Governo islâmico não tinha acesso desde a Revolução Iraniana de 1978-1979. Poderia, assim, fortalecer a sua economia com o fim das sanções, aumentando as vendas de petróleo nos mercados internacionais e obtendo investimento estrangeiro e know-how no sector da energia e outros. Este robustecimento da economia permitira ao país melhorar a situação económica interna da sua população. Ajudaria, ainda, a suportar e consolidar as suas ambições de potência regional. A presença militar na guerra da Síria em apoio ao Governo de Bashar al-Assad, o financiamento do Hezbollah no Líbano, o apoio económico e militar a grupos e milícias xiitas no Iraque e noutras partes do Médio Oriente, estavam a custar caro ao Irão e a aumentar a contestação interna pela escassez de recursos.
2. No plano externo, o acordo do P5+1 sempre foi contestado por Israel e nunca convenceu os países árabes do Médio Oriente — desde logo a Arábia Saudita (Why Saudi Arabia Hates the Iran Deal in Foreign Policy). Sempre viram nele uma artimanha do arqui-rival Irão para aumentar o poder no Médio Oriente sobre os Estados árabes-islâmicos. Os iranianos não teriam uma genuína intenção de o abandonar, apenas procuravam, nesta fase, consolidar a sua ambição de poder regional pela via económica.
Para além da vocal oposição do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, a guerra por outros meios começou logo em 2015. No plano económico, o primeiro ataque veio da Arábia Saudita. Ao deixar cair significativamente o preço do petróleo nos mercados internacionais, não cortando a sua produção para elevar o preço (The ‘Oil War’ between Iran and Saudi Arabia in Rusi), os sauditas tentavam eliminar, o mais possível, o ganho que o Irão iria ter pelas suas acrescidas exportações — o outro alvo era a indústria de petróleo de xisto (shale oil) nos EUA.
Mas foi a chegada ao poder de Donald Trump nos EUA que alterou radicalmente os dados da questão e reabriu o risco de conflito aberto. Em 2018, os EUA retiram-se do acordo considerando-o incapaz de garantir que o Irão não obteria capacidades nucleares militares. As limitações temporárias a que estava sujeito o Irão nesse acordo foram consideradas insuficientes, bem como o facto não prever quaisquer limitações ao seu programa balístico, a outra peça fundamental da ambição militar-nuclear iraniana.
Nessa sequência, os EUA avançaram com a imposição de abrangentes sanções económicas. Como resultado, as vendas de petróleo do Irão caíram, nos últimos meses, para menos de metade do que eram em inícios de 2018, antes a saída dos EUA do acordo e a (re)imposição dessas sanções. (Ver Six charts that show how hard US sanctions have hit Iran in BBC, 2/05/2019). Entre os seus principais clientes externos — China, Índia, Japão, Turquia, Itália e Grécia —, a China e a Índia têm, de longe, a quota mais elevada.
3. Em inícios de Abril de 2019, a tensão entre os EUA e o Irão voltou a subir. Os EUA passaram a incluir os Guardas Revolucionários Iranianos na sua lista de organizações terroristas. (Revolutionary Guard Corps: US labels Iran force as terrorists in BBC). Essa força militar especial foi criada na altura da revolução islâmica pelo ayatollah Khomeini para proteger o regime. Posteriormente, passou também a ser um instrumento da sua projecção de poder no exterior, apoiando grupos xiitas um pouco por todo o Médio Oriente.
As tensões aumentaram ainda na última semana com o envio de navios de guerra da Marinha norte-americana e vários bombardeiros B-52 para o golfo pérsico, em particular do porta-aviões Abraham Lincoln. Pela explicação oficial, estariam em preparação acções contra interesses norte-americanos no Médio Oriente que seriam empreendidos directamente, ou por grupos interpostos, pelo Irão.
A retórica belicista também subiu de tom da parte dos iranianos. Houve a clássica ameaça feita sempre que há tensões com os EUA, de fecharem o estreito de Ormuz no golfo pérsico — por aí passa a maioria das exportações de petróleo da região. (Iran says ready for U.S. waivers end, as Guards threaten to shut Hormuz in Reuters). Foi também feita a ameaça de poderem ser atacados navios comerciais dos EUA e até de que a marinha de guerra norte-americana “poderia ser destruída com um único míssil”. (Iranian cleric says US aircraft carrier can be ‘destroyed with one missile’ in Times of Israel).
No plano político, o Presidente iraniano Hassan Rouhani anunciou que o seu país se iria afastar de partes do acordo, se não tivesse garantias de que os benefícios económicos que estavam prometidos se vão concretizar. O Irão deixará de exportar as suas reservas de urânio enriquecido e de água pesada, voltando a armazenar tais materiais necessários para construção de uma arma atómica. Irá, assim, desobrigar-se dessa parte acordo. Poderá também, a partir de Julho, reiniciar o seu programa de enriquecimento de urânio. Para além disso, foram feitas outras ameaças mais radicais, como a possibilidade de o Irão abandonar o Tratado de não Proliferação das Armas Nucleares (TNP).
4. Sendo objectivo do Irão tentar afastar, ou, pelo menos, contornar, as sanções dos EUA, a Rússia pouco pode fazer para esse efeito. Não é compradora de petróleo ou gás natural ao Irão — isso os russos também exportam. Ao mesmo tempo, está já envolvida no esforço de guerra na Síria, onde os iranianos são um aliado, mas também rival na influência sobre o regime de Bashar al-Assad. (Nesse aspecto, não é mau para os russos um certo enfraquecimento do Irão pelas sanções do EUA.)
Por sua vez, na Venezuela, a Rússia tem apoiado financeiramente o Governo de Nicolás Maduro e investido no sector enérgico. A via usada foram os empréstimos da Rosneft russa à PDVSA venezuelana, ficando os russos com a garantia dos activos da Citgo nos EUA. Mas face a essa exposição financeira de elevado risco na Venezuela — e aos custos elevados da guerra da Síria —, a situação não aconselha maiores esforços financeiros no exterior, pelo menos nesta altura.
Quanto à China, está, ela própria, envolvida numa guerra comercial com os EUA. Pode ser tentada a abrir mais uma frente com os norte-americanos, efectuando um apoio aberto ao Irão para contornar as sanções, até pelo compromisso do Irão em participar na grande rede de infra-estruturas e projectos empresarias chineses ligada à “nova rota da seda”. (China Set To Defy U.S. Sanctions On Iran in Oil Price). Para além disso, é o maior comprador internacional de petróleo do Irão.
Mas a China é normalmente cautelosa. (Although Unhappy With US Sanctions on Iran, China Won’t Fall Out With Washington in The Diplomat, 25/04/2019). Não se quer expor em conflitos internacionais, a não ser onde tem um interesse directo de soberania. Teme, desde logo, causar alarme entre os Estados que já olham com apreensão a sua ascensão na Ásia-Pacífico. Poderia alimentar o desejo de formação de uma grande coligação anti-chinesa. Além disso, pode ser mais vantajoso usar a situação como moeda de troca nas suas negociações comerciais com os norte-americanos. Se for assim, para resolver o problema económico do Irão, a China não vai bastar, ou até pouco fará em concreto. Restam, então, a França, o Reino Unido e a Alemanha (o chamado E3) — grosso modo a União Europeia — que tem, nesta altura, um delicado problema nas mãos.
5. Por iniciativa da França, à qual se associaram a Alemanha e o Reino Unido, foi criado um veículo especial de pagamento das transacções feitas com o Irão por empresas europeias. É o chamado Instrument of Support of Trade Exchanges (INSTEX). Pretende evitar as sanções dos EUA, permitindo o comércio com o Irão sem depender de transacções financeiras directas. (Ver Governo de França, Joint statement on the creation of INSTEX).
Todavia, para além das questões técnicas ligadas à sua operacionalização, não é certo que esta iniciativa tenha um grande sucesso entre as empresas europeias que fazem negócios com o Irão, ou tencionavam fazer após a assinatura do acordo de 2015. Desde logo, para muitas empresas o risco político de poderem enfrentar problemas no acesso ao mercado dos EUA, seja perda de acesso ao sistema financeiro norte-americano ou capacidade de fazer negócios com empresas desse país, não compensa o que o Irão tem para oferecer. (France's Total warns of Iran exit as EU struggles to save economic ties in Reuters).
Para a grande maioria das empresas, o mercado dos EUA é certamente um mercado bem mais importante. Mesmo com a alternativa de recurso a mecanismos financeiros como o INSTEX para evitar sanções, a adesão generalizada das empresas europeias interessada no Irão é, por todas estas razões, bastante incerta. Assim, politicamente, para o E3 e a União Europeia, o resultado pode ser mau se esse mecanismo financeiro não for suficiente para manter o Irão comprometido com o acordo de 2015, apenas acabando por gerar, ainda mais divisões, nas relações transatlânticas. (INSTEX: A Blow to U.S. Sanctions? in Lawfare). Se for assim, será o pior resultado possível para os europeus, pois perdem nos dois campos.
A situação não é nada facilitada por um dos objectivos do Irão, ao ameaçar sair do acordo de 2015, ser mesmo esse — dividir a União Europeia e os EUA —, tarefa para a qual Donald Trump também tem contribuído bastante desde que chegou ao poder.
6. Nos próximos meses ou anos veremos qual o futuro do acordo nuclear de 2015. Para já, os europeus pensam poder ainda salvá-lo, em conjunto com a China e a Índia, pela importância que ambos os países têm na economia do Irão, em especial nas suas exportações petrolíferas. (Mogherini puts hopes in China and India to save Iran deal in Euractiv).
A situação faz lembrar uma curiosa e irónica reflexão contida num clássico de Montesquieu, as Cartas Persas, escritas em inícios do século XVIII (Carta XXIV, Tomo I, trad. port. 2015, Tinta da China, p.66). Nessa carta, o rei de França era descrito por Rica, um ficcional viajante persa na Europa, como um “grande mágico”. Sendo o “príncipe mais poderoso da Europa”, exercia “o seu império sobre o próprio espírito dos seus súbditos”, levando-os “a pensar como ele quer. Se só tiver um milhão de escudos no seu tesouro, e precisar de dois, basta-lhe persuadi-los de que um escudo vale dois e eles acreditam. Se tiver de travar uma guerra difícil e não tiver dinheiro, basta-lhe meter-lhes na cabeça que um pedaço de papel é dinheiro, e eles acreditam imediatamente”.
Pois bem, a França e restantes países europeus vão precisar de ser ainda maiores mágicos na diplomacia se quiserem manter os iranianos comprometidos com o acordo de 2015 (ver Riccardo Alcaro e Natalie Tocci, Europe can still save the Iran nuclear deal in Politico) sem deterioram gravemente as relações com os norte-americanos. Nesta altura, não parece que o INSTEX nem outras acções diplomáticas sejam magia europeia suficiente para isso, nem para contrariar os jogos de guerra dos EUA e Irão no golfo pérsico, dos quais os europeus são meros espectadores.