Moradores das Fontainhas pedem embargo de obra que tapa vistas para o Douro
Desde a construção da Alameda e Passeio das Fontainhas, no século XVIII, nunca um edifício foi erguido acima da linha do muro. Pareceres da DGPC e da Câmara do Porto chegaram a ser desfavoráveis, mas acabaram por aprovar o projecto. Moradores temem abertura de “precedente terrível”
Quando Raul Bragança procura explicar o desconforto com a construção de uma casa no início da Rua da Corticeira, números 87 a 91, lembra-se de uma fotografia da neta ali tirada há poucos meses. Pega no telemóvel e mostra a imagem da menina, feita junto ao fontanário do Passeio das Fontainhas e enquadrada entre as deslumbrantes vistas sobre o Douro e a ponte D. Luís. “Isto agora já não é possível”, comenta entristecido. Pela primeira vez desde a construção da Alameda e do Passeio das Fontainhas, no século XVIII, um edifício ultrapassa a altura do muro de granito do passeio. Do local onde Raul Bragança tirou a fotografia à neta vêem-se agora as paredes de cimento de uma moradia em construção. E essa aparição está a gerar revolta entre os moradores. Vários já apresentaram queixas e um pedido de embargo foi entregue na autarquia esta terça-feira. Um abaixo-assinado dirigido a Rui Moreira está também a ganhar forma. E se o caso fizer escola?
A moradia vai ocupar o lugar onde até há pouco tempo havia apenas escombros, mas onde, anos antes, existiu uma ilha. O projecto de arquitectura - da autoria do gabinete Vinagre & Côrte-Real - prevê a “alteração e ampliação” do edifício. E garante, na sua memória descritiva e justificativa, manter a volumetria existente e não alterar a cércea do edifício. Mas fotografias da casa antiga, partilhadas na página do Facebook Viver as Fontainhas, comprovam que o telhado da construção anterior ficava abaixo do muro, não interferindo com as vistas na zona, no miradouro das Fontainhas.
Mas como foi, então, licenciada esta construção? Por estar integrado na zona histórica do Porto, classificada pela UNESCO, o projecto foi submetido à apreciação da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC). E as dúvidas quanto à legalidade do projecto existiram. Se do ponto de vista arqueológico, a DGPC dizia não haver “condicionantes”, do ponto de vista arquitectónico o entendimento parecia diferente. O processo andou de mãos em mãos, sofreu alterações para mitigar as falhas inicialmente detectadas. Mas, ainda assim, um técnico superior pronunciava-se, em Maio de 2016, mantendo incertezas: apesar das mudanças introduzidas, escreveu, estas “continuam a não ir de encontro à informação técnica emitida”. Perante a situação dúbia, remeteu para “consideração superior”. E daí surgiu luz verde, da caneta do sub-director geral, João Carlos dos Santos. A DGPC não esteve disponível para falar com o PÚBLICO.
Também na Câmara do Porto, o vaivém entre técnicos foi uma realidade. Numa primeira apreciação, na direcção municipal do urbanismo, considerava-se que o projecto não cumpria as “regras urbanísticas que se impõem à luz do PDM”, violando os artigos 11 e 44, e também o artigo 20 do RJUE. Perante os incumprimentos, um segundo projecto de arquitectura foi apresentado. Alterações? O corpo mais elevado, que inicialmente se distanciava 1,30 metros do muro do Passeio das Fontainhas, passou a estar a 1,50 metros. E pouco mais. O arquitecto António Côrte-Real garantia, de novo, que a volumetria era a mesma do passado e que a cércea não se alterava. Argumentação que parece ter convencido a autarquia. A proposta já não levantava “questões relevantes de integração e imagem urbana” e conquistava, em Maio de 2016, um parecer favorável. E o executivo de Rui Moreira mantém a versão.
Do café de Bruno Silva, mesmo em frente à polémica construção, já não se vislumbra o Douro. À mesa, Elsa Teixeira fala da sua visita à Câmara do Porto esta semana, em busca de explicações para o que lhe parece irreal. A denúncia que fez no início do mês ainda não consta do processo. O pedido de embargo já foi feito. E outros moradores preparam-se para repetir o acto. Elsa tem ligações umbilicais às Fontainhas. Os pais, tios e avós moraram ali, ainda antes dela nascer. A avó Palmira de Sousa foi até homenageada há uns anos: era a última carquejeira viva da cidade. Para ela, aquela construção é um “desrespeito” pelo património. Tal como para os ex-vizinhos Mário Cruz e Maria Teresa que, mesmo tendo a casa arrendada, se juntaram à “causa”. No Facebook Viver as Fontainhas, Soraia Gomes tem dinamizado a comunidade. E teme o esquecimento deste assunto. Como outros: o lixo a proliferar na rua, o estacionamento selvagem e o ruído, as promessas adiadas de reabilitação do miradouro, os despejos como prato do dia, a proliferação de alojamentos locais.
Dois fiscais da Câmara do Porto visitaram o local ao final da manhã e aguçaram a esperança dos moradores, divididos entre um optimismo pálido e um pessimismo triste. “Isto abre um precedente terrível”, diz Bruno Silva: “Se continuar, tudo é possível daqui para a frente.”