Na escarpa das Fontainhas, a vista é já uma saudade
Boa parte dos poucos moradores que ainda vivem no Bairro da Tapada já sabem que terão de sair dali, após a compra das casas por uma empresa do ramo imobiliário.
Nas Fontainhas, numa manhã fria, mas solarenga, uma das moradoras da primeira linha de casas da escarpa situada na freguesia da Sé estende a roupa acabada de lavar no varal montado no varandim da casa onde vive. Está num segundo piso com vista folgada para o rio Douro e para a zona ribeirinha de Gaia. Ao lado, sentado numa cadeira, o marido, a quem foi diagnosticado Alzheimer, aproveita os raios de sol que ajudam a equilibrar a temperatura. Dali conseguem ver uma espécie de retrato emoldurado pelas pontes de ferro - D. Luís e D. Maria Pia. Já reformados, são dois dos cerca de 50 moradores que habitam no Bairro da Tapada, comprado há dois meses por uma empresa de investimentos imobiliários.
Como acontece com o resto dos vizinhos temem que o negócio ponha em risco a permanência das três dezenas de famílias que lá vivem. Sair daqui é uma questão que querem afastar como hipótese. Dizem que o novo proprietário tem planos para transformar o bairro em alojamento para turistas. Mais abaixo, no bairro Maria Vitorina, na mesma escarpa, já começaram a sair moradores. Só sete das 20 casas é que ainda estão ocupadas. Na Tapada luta-se por um destino diferente e contra o despovoamento de uma das zonas mais carismáticas do Porto.
Muitas das famílias nasceram aqui ou vivem aqui desde sempre. É o caso de Maria Alice Sousa, que aqui chegou com um mês de idade. Vai fazer 74 anos em Janeiro e outros tantos como residente. O bairro, diz, terá cerca de 150 anos, “pelo menos”. Faz as contas com base no número de gerações que por lá passaram.
Quando ainda era “menina” as casas não tinham casas de banho no interior. Para isso existia um espaço partilhado, que ainda lá está. Actualmente só três é que continuam a não ter. A que ela arrenda com o marido de 77 anos, e que já era arrendada pelos pais, está equipada com casa de banho. Teve o casal que a construir. “A senhoria nunca fez obras”, diz que só “tratava” dos telhados. Todas as obras feitas pelos inquilinos saíram do orçamento pessoal de cada um. “Gastei aqui muito dinheiro”, conta.
Maria Alice, “há uns anos”, foi operada a um joelho. A casa, cujo contrato foi alterado há 28 anos para o nome do cônjuge, que diz ter uma “doença degenerativa”, está num segundo piso. Impossibilitada de subir escadas arrendou há quatro anos outra habitação num piso inferior. Está a pagar por duas casas. “Quando fui para lá estava toda podre”, diz. Teve que fazer obras. No total gastou “à volta de 20 mil euros”. Na outra, também já tinha investido dinheiro das suas finanças pessoais.
Mensalmente, paga pelas duas casas cerca de 100 euros. A média do valor dos arrendamentos no bairro varia entre os 50 e os 100 euros, embora alguns contratos mais recentes cheguem perto dos 200 euros. Maria Alice Vive com uma reforma de aproximadamente 300 euros.
Um bairro inteiro vendido
A 15 de Novembro, como aconteceu com todos os outros moradores, recebeu por correio uma carta que dava conta da compra do bairro por uma empresa de investimentos imobiliários, a Porto Baixa. No dia 24, representantes do novo proprietário dirigiram-se à Tapada para falarem com os moradores.
É aí que os moradores começam a temer pelo futuro. Afirma quem esteve presente na reunião que lhes foi dito que os contratos com prazo não seriam renovados. Quem não estivesse em cumprimento com as rendas seria igualmente convidado a sair. Aos mais antigos terá sido dito que permaneceriam no bairro. Programadas estarão obras de remodelação nas habitações com cerca de 25 metros quadrados. Os moradores dizem que lhes foi dito por quem lá foi que o plano será transformar o bairro em alojamento local para turistas.
Nascidos no bairro, contratos recentes
Maria Alice tem um contrato antigo, mas tem também outro recente da casa onde investiu dinheiro em obras. “Se tiver que sair daqui pego num martelo e mando tudo abaixo”, diz. Foram as poupanças de uma vida. “Não me imagino a morar noutro sítio. Não quero ir para uma casa da câmara”, desabafa. E acrescenta: “Isto é a Sé. Isto é histórico”.
A completar 63 anos no próximo mês, Delfina Ribeiro é “nascida e criada” na Tapada. Conta que já se ouvia uns “zunzuns” de que algo semelhante pudesse acontecer: “Há anos que se diz que o bairro vai abaixo”. Da senhoria, garante, não recebeu qualquer informação sobre o negócio que estava a ser feito.
Quando recebeu a carta diz ter entrado em “pânico”. Apesar de três gerações da sua família terem vivido no bairro, e de sempre ter morado aqui, tem contrato novo por força de ter mudado para outra casa. Uma advogada foi contratada pelos moradores. “Viu o meu contrato e disse que estava feio”, conta. “Estou agora sujeita a ser das primeiras a sair”.
Reformada, assume não ter possibilidades para arrendar outra casa. “Ganho 375 euros, se for para uma casa de 300 euros que dinheiro é que eu tenho para pagar água e luz?”, questiona.
Na mesma situação está Ricardo Pereira. Tem 38 anos e vive na Tapada desde sempre. Já lá viviam os avós. Dentro do bairro foi saltando de casa em casa. Saiu da casa dos pais quando casou há 15 anos e há quatro mudou-se para outra quando teve o segundo filho. Paga uma renda de 170 euros. Só em despesas totais da casa “não chega um ordenado”. Também investiu em obras.
Já em Março a empresa comprou um terreno contiguo ao bairro. Até há 17 anos, este terreno era parte do bairro até uma das habitações ter cedido. Por questões de segurança esse sector do bairro, que na altura tinha 88 casas, foi demolido. Actualmente há lá um descampado. Diz Ricardo que a empresa terá dito na reunião que será lá construído alojamento para turistas. “Deram a entender que é o que também vão fazer aqui”, conta.
Ajuste das rendas poderá afastar inquilinos
Ainda que o contrato de arrendamento que assinou seja de termo indeterminado, Ricardo teme que seja um dos que corre risco de sair. “É difícil imaginar morar noutro sítio. Estamos habituados a isto. Aqui todos se conhecem”, frisa. Recorda-se de aquela zona ser movimentada e ter outra vida: “Agora está a ficar abandonado. Parece um deserto. Vão passando uns turistas para tirar fotografias”.
Lurdes Pereira, 64 anos, também mora aqui desde que nasceu. Está também agora noutra casa e por isso fez novo contrato há dois anos. Quando foi notificada da venda do bairro dirigiu-se ao escritório da imobiliária. Lá, ter-lhe-ão dito que ninguém ficaria sem casa e que iam apenas remodelar o bairro. No dia em que aqui vieram disseram-lhe que os novos contratos não seriam renovados, garante.
“Se eles dizem que é para remodelar, fazem o que querem aqui e depois fazem novo contrato com valores mais elevados. É uma maneira de não voltarmos. Foi o que aconteceu na Rua Escura ou no Souto, onde agora estão lá as casas vazias”, diz.
Futuro pode ou não passar pelo turismo
Contactado pelo PÚBLICO, Pedro Soares, sócio-gerente da Porto Baixa nega “redondamente” que os inquilinos serão despejados. Confirma que o bairro foi comprado há dois meses e que adquiriram um terreno contíguo em Março. Afirma que o complexo será remodelado e que os contratos de arrendamento estão a ser analisados.
O gestor garante que os contratos serão cumpridos, contudo, assume que quem estiver em falta com o pagamento de rendas será convidado a sair. A compra do bairro foi realizada tendo como finalidade a sua rentabilização e, nesse sentido, as rendas serão ajustadas aos valores do mercado “de acordo com a lei”, explica.
A Porto Baixa admite não estar ainda numa posição em que possa adiantar qual o aumento que os arrendamentos vão sofrer, mas garante serão “os justos” e na perspectiva de rentabilizar o investimento. Existe a intenção de construir no terreno contíguo, mas nega que esteja definido “hoje” que, tanto as novas construções como as habitações do resto do bairro, sejam exploradas para alojamento para turistas. E no futuro? O investidor responde que não pode prever o que acontecerá mais tarde.
No Maria Vitorina sobram sete inquilinos
Metros mais abaixo do bairro da Tapada, no Maria Vitorina, parece não existir vivalma. No bairro com 20 casas, só sete estão ocupadas. O PÚBLICO encontrou um morador, Alexandre Silva, 55 anos, que mora aqui há 44 anos, e há dois na casa actual. Tem novo contrato que acaba em Março. Só quatro dos sete inquilinos é que têm contratos antigos.
Como todos os outros vizinhos com contratos recentes recebeu uma notificação do senhorio. Os contratos não serão renovados. Todos os outros notificados já abalaram daqui para fora. Manuela Mota, que se junta à conversa, está na mesma situação. Diz-nos que além do si e de Alexandre há mais um inquilino com ordem de marcha. “Vão sobrar quatro no bairro”, contabiliza.
Alexandre diz haver rumores de que o bairro já foi comprado. Porém, as rendas ainda as tem pago ao mesmo senhorio. Conta que desde que aqui mora nunca assistiu a tanto interesse nas Fontainhas. Começou a acontecer na altura em que inicia a construção do hotel que abriu em 2016 onde acaba a escarpa, já na Avenida Gustavo Eiffel, junto ao rio.
Adivinha qual será o seu destino, mas vai lutar para não sair: “Mesmo que receba uma indemnização, não há dinheiro que pague as memórias que tenho daqui”.