A Guerra do Irão não terá lugar…
A União Europeia, para ser um ator relevante, tem de perceber que os atuais regimes do Médio Oriente estão condenadas a desaparecer e, perante o custo para a liberdade e os direitos humanos, tem de deixar de dar prioridade à estabilidade e à cooperação com as ditaduras para poder controlar os fluxos migratórios.
Em 1935, quando os ventos da guerra já se faziam sentir, Jean Giraudoux escreveu a peça intitulada A Guerra de Troia não terá lugar, alertando para os perigos que advinham do desrespeito à lei internacional. Todos sabemos que o autor, tal como Cassandra, tinha razão.
Como não nos lembrarmos do grito de Heitor, o pacifista troiano, contra a hipocrisia, ao ouvirmos Trump dizer que à última hora decidiu suspender o ataque contra o Irão? Hipocrisia porque Trump procura o confronto com o Irão ao retirar-se do acordo nuclear, ao impor sanções que asfixiam o país e ao ameaçar com uma guerra “devastadora”.
A sabotagem de petroleiros pode, de facto, ter sido a resposta iraniana às sanções que impedem a exportação do seu petróleo, que terá passado de 2,5 milhões de barris por dia para 240 mil. Seguro é que o agravar das tensões no Golfo servem os belicistas da Administração americana, como Bolton e os sectores mais radicais do regímen iraniano.
A Grande Guerra do Médio Oriente começou com a guerra Irão-Iraque (1980-1988) que fez mais de 800 mil mortos. A invasão do Irão por Saddam Hussein não teve o apoio da administração Carter, mas os iraquianos contaram, para o seu esforço de guerra, com o apoio ativo da administração Reagan, a partir de 1982. Para os iranianos, os conflitos atuais são a continuação dessa guerra, que tinha como objetivo destruir a República Islâmica do Irão e a ameaça que a sua revolução representava para as outras ditaduras do Médio Oriente. Tendo visto os Estados Unidos invadirem dois dos seus vizinhos — o Iraque e o Afeganistão —, os iranianos procuraram no desenvolvimento da arma nuclear uma capacidade dissuasória da invasão do seu território. O poder nuclear também permitiria ao Irão, sacralizando o seu território, prosseguir com as suas ambições regionais, com riscos diminutos. Os reformadores iranianos no poder assinaram o acordo nuclear com a convicção de que, assim, uma invasão americana deixava de ser provável.
Esta guerra, que desde o início tem uma forte componente regional — de que os Estados Unidos têm sido um ator muito importante, mas não o principal — é hoje, antes de tudo, uma guerra entre o Irão e a Arábia Saudita (e os seus aliados dos Emirados, Israel e Egito). Essa guerra trava-se em várias frentes do Médio Oriente, na Síria e no Iémen, e fez já centenas de milhares de mortos e mais de uma dezena de milhões de deslocados e refugiados.
A invasão do Iraque pelos Estados Unidos destruiu a ordem regional que, desde a II Guerra Mundial, prevalecia no Médio Oriente, e permitiu a chegada ao poder em Bagdade de um Governo pró-iraniano. A influência regional do Irão estendeu-se à Síria, dando um apoio militar decisivo para a sobrevivência da ditadura de Assad, tanto diretamente como através das milícias dos seus aliados do Hezbollah libanês.
Os EUA aceitaram, durante a administração Obama, que não eram mais a força hegemónica num Médio Oriente que se tinha regionalizado. Para Obama, os EUA deviam ser, primeiramente, um ator da regulação regional. Já Trump pensa que vai poder repor a hegemonia americana apoiando a estratégia de confronto com o Irão da Arábia Saudita e de Israel.
A União Europeia procura salvar o acordo nuclear com o Irão, mas para isso precisa de mostrar que é capaz de encontrar alternativas, com a China e a Rússia, às sanções económicas americanas que, em desrespeito pelas regras internacionais, também atingem as suas empresas que queiram negociar com o Irão.
A UE tem de se opor à dimensão política da estratégia saudita. Os príncipes sauditas sabem que a região está em profunda mutação política e temem pelo futuro do seu poder.
A frente americano-saudita não se opõe só ao Irão, opõe-se com a mesma ferocidade a todas as forças que defendem transformações políticas nas ditaduras árabes, nomeadamente islamitas (democráticos ou não) e liberais. É assim que dão todo o seu apoio à ditadura militar egípcia, que fez 60 mil presos políticos, e continuam a tentar reverter o processo democrático na Tunísia. É assim que apoiam a ofensiva do General Haftar para tomar o poder em Trípoli. É assim que, na Palestina, isolam o Hamas. Foi assim que, no Bahrein, os sauditas intervieram militarmente para impedir o triunfo da oposição.
A União Europeia, para ser um ator relevante, tem de perceber que os atuais regimes da região estão condenadas a desaparecer e, perante o custo para a liberdade e os direitos humanos, tem de deixar de dar prioridade à estabilidade e à cooperação com as ditaduras para poder controlar os fluxos migratórios. Mais, não se pode calar perante a morte, em cativeiro, do Presidente do Egito, Mohamed Morsi, que eleito democraticamente foi destituído por um golpe militar. E aqui gostaria também de ouvir a voz de Portugal.
Pode ser que a União Europeia não seja capaz de impedir a guerra de Trump contra o Irão, mas pode mostrar que há uma alternativa ao alinhamento americano com as forças que procuram, através da guerra, impor a sua hegemonia no Médio Oriente. Assim, terá maior autoridade ética junto dos iranianos, não só dos reformistas, mas sobretudo junto dos que se revêm nos valores que a Europa diz defender.