Inovação constitucional na Europa: o Conselho como câmara alta
É possível que o clamor agora ensaiado contra a “incapacidade de decisão” dos líderes europeus venha a ter razão de ser. Mas não há, para já, nenhum motivo para estar pessimista.
1. Tal como aqui se havia previsto, o Conselho Europeu de 20 e 21 de Junho nada adiantou quanto ao vértice das instituições europeias. Na sequência desta incapacidade dos líderes europeus para chegarem a um primeiro acordo, foram muitas as vozes que falaram em fracasso e em impasse. Houve algum dramatismo e algum estrondo, considerando que a União Europeia dava um sinal de fraqueza e de bloqueio e que o fazia num momento particularmente delicado da vida internacional. Muito francamente, e postas as coisas de um modo cru, há manifesto exagero nesta impostação. O que seria assaz surpreendente era, logo na primeira oportunidade, ter obtido um entendimento satisfatório.
2. Insiste-se, pois: o Conselho Europeu da semana passada foi apenas um primeiro momento. Atenta a complexidade das escolhas em presença, deve ter-se por absolutamente normal que os chefes de executivo dos 28 Estados-membros (ou dos 27, se quisermos descontar o Reino Unido) precisem de tempo, de confrontação, de espaço de manobra, de jogo e de negociação para lograr um grau razoável de consenso. Decerto que, só postos diante da pressão da realidade, alguns deles adquirem a clara consciência da impossibilidade, da inconveniência ou das consequências indesejáveis de certas escolhas. Só o tabuleiro das negociações em tempo e em espaço real confere aos decisores o grau de conhecimento imprescindível.
Nesta fase, não vejo, por isso, nenhuma razão para um discurso de dramatização e para uma atitude de crítica severa e insistente às instituições e aos dirigentes europeus. Compreendo que, por causa do processo do “Brexit” e da substituição do primeiro-ministro britânico, haja desta feita mais pressa, mais urgência. Para tanto, como referi na última crónica, tudo recomendaria que a nomeação do Conselho fosse feita antes da terceira semana de Julho e preferencialmente até ao dia 1 de Julho. Não é aliás por acaso que o Conselho para a segunda ronda de negociações foi convocado para 30 de Junho (sendo, de resto, precedido por longas horas de encontro dos líderes dos Estados mais fortes e dos mais altos dirigentes europeus na reunião do G20 no Japão). Todos estão cientes de que é altamente conveniente ter uma solução antes da substituição do primeiro-ministro britânico e antes da eleição do presidente do Parlamento Europeu.
3. É possível que o clamor agora ensaiado contra a “incapacidade de decisão” dos líderes europeus venha a ter razão de ser. Mas não há, para já, nenhum motivo para estar pessimista. A não obtenção de soluções à primeira tentativa é perfeitamente explicável e previsível. Por um lado, porque os resultados das eleições europeias desembocaram numa maior fragmentação, obrigando a um consenso mínimo de três partidos para assegurar uma maioria absoluta. Por outro lado, porque, tirando a França, as lideranças dos grandes países enfrentam conjunturas internas assaz problemáticas. No Reino Unido, ocorre a escolha de um novo primeiro-ministro e não há nenhuma certeza quanto ao desenlace do “Brexit”. Na Alemanha, Merkel depara-se com uma crise iminente na “grande coligação”, mais fragilizada do que nunca. Na Itália, a coligação entre populistas de direita e de esquerda está em conflito aberto e intercede o risco de um processo europeu por causa da dívida e do défice. Na Espanha, Sánchez, em gestão, mostra-se incapaz de encontrar uma fórmula sustentável de governo. Na Polónia, intercorre a legitimidade ferida por causa do processo europeu do art. 7.º por quebra do respeito dos valores fundamentais da UE. Sobra a França de Macron que, com uma aguda consciência da tranquilidade (relativa) da sua situação política, quer maximizar a afirmação do seu país e da sua influência pessoal.
4. Alguns afligem-se ainda com uma suposta morte do processo do Spitzenkandidat, que justamente garantia uma maior legitimação democrática (e parlamentar) da UE, por o novo presidente da Comissão ser alguém cujos nome e perfil haviam sido postos a sufrágio dos cidadãos europeus. Antes do mais, convém lembrar que, embora improvável, não é impossível que o Conselho venha a escolher algum dos ditos candidatos de topo. Mas mesmo assumindo que isso não vai suceder, não creio que intercedam motivos para “dramatizar” esse “abandono” pelo Conselho. Com efeito, como aqui se explicou mais de uma vez a este propósito, as coisas passam-se ao nível europeu como se passam ao nível nacional. Se há uma maioria clara de um partido, o candidato a chefe do executivo ocupará quase de certeza o cargo em causa. Mas se não há maiorias claras, é no jogo da negociação parlamentar que se encontra a personalidade que há-de liderar o executivo. Em nenhum país, mesmo nos mais vincados sistemas parlamentares, há um efeito vinculante da indicação de um candidato a chefe do executivo. Neste caso, as variáveis são ainda mais fluidas porque é necessário entrar em linha de conta com a relação de forças no Parlamento e a relação de forças no Conselho. E neste, não releva apenas a relação de afinidade partidária; neste releva também a dimensão dos Estados, o equilíbrio geopolítico, a igualdade de género. Tudo o que torna mais complexa a decisão.
Diga-se, em abono da verdade, que, desta vez, houve até um enorme progresso “constitucional” de que praticamente ninguém se deu conta. Pela primeira vez e de um modo público e semi-oficial, o Conselho aceitou organizar-se por famílias políticas. O encontro dos seis primeiros-ministros – dois do PPE, dois dos socialistas e dois dos liberais – é um enorme desenvolvimento constitucional. Um órgão que, por natureza, representa os Estados, acede a organizar uma negociação em função da afinidade política europeia. Esta “partidarização” do Conselho é um sintoma inequívoco de uma maior e mais funda integração. Ao funcionar por famílias políticas, o Conselho imita o Parlamento e toma as vestes de uma câmara alta em modo quase federal. Mais do que uma câmara alta, uma câmara altíssima.
SIM e NÃO
SIM. Oposição turca. A vitória de Imamoglu nas eleições municipais em Istambul é um importante sinal da e para a sociedade turca. A derrota é uma lição para Erdogan e para a sua tentativa de sufocar a democracia.
NÃO. Governo e estado da saúde. Costa e Centeno têm destruído, dia a dia e área a área, o Serviço Nacional de Saúde. A crise nos serviços de obstetrícia a Norte e a Sul é mais um grave capítulo.