Os discursos do 10 de Junho
Os discursos de Sampaio da Nóvoa e João Miguel Tavares no 10 de Junho têm bem mais semelhanças do que se poderia antever.
Corria o ano de 2012, ainda o governo de Passos Coelho não tinha um ano de vida, e o país debatia-se com uma severa crise económica e com as consequências de uma austeridade imposta pela famigerada troika. No dia 10 de Junho desse ano, na qualidade de presidente das Comemorações do Dia de Portugal, Sampaio da Nóvoa proferiu um discurso que haveria de fazer história. Não o tivesse ele proferido naquela hora e naqueles termos e, decerto, não teria sido candidato, alguns anos mais tarde, à Presidência da República. Não foram poucos os que, no âmbito da chamada opinião publicada, exultaram com o texto e se apressaram a pressagiar ao seu autor os mais altos voos na vida pública nacional. Sampaio da Nóvoa emergia, deste modo, como uma luz de lucidez, arrojo e inteligência no contexto assaz difícil e doloroso que a sociedade portuguesa atravessava.
Sete anos depois, numa conjuntura muito diferente, João Miguel Tavares, conhecido jornalista e cronista, foi encarregue pelo Presidente da República de presidir às ditas comemorações do 10 de Junho e de, nessa qualidade, proferir o discurso da praxe. Logo pelas primeiras reacções manifestas pôde constatar-se o carácter polémico da escolha presidencial. Tavares não provinha do mandarinato universitário, desconhecia-se-lhe obra ensaística publicada, não se lhe reconhecia a produção de uma reflexão densa sobre o que quer que fosse. A circunstância de ser assumidamente um liberal de direita não favorecia a sua aceitação junto de alguns importantes fazedores de opinião. O jornalista não se atemorizou, contudo, com tais desconsiderações e, no passado 10 de Junho, lá se dispôs a apresentar a sua comunicação ao país. Não se pode dizer que o seu discurso não tenha tido impacto. Bem pelo contrário. Uma parte significativa da sociedade portuguesa aderiu com entusiasmo ao seu conteúdo e a comunidade dos comentadores profissionais dividiu-se drasticamente na apreciação do mesmo. João Miguel Tavares tornou-se, de súbito, num ícone de uma direita em crise e numa referência de segmentos sociais e políticos desencantados.
Vale a pena estabelecer uma comparação entre os dois discursos proferidos em épocas diversas e com autores tão diferentes. Têm bem mais semelhanças do que se poderia antever. Façamos um pequeno e simples exercício apresentando algumas citações dos dois textos: “É o compromisso com os outros, com o bem de todos, que nos torna humanos”; “Para quem ainda acredita numa ideia de comunidade, os portugueses são aqueles que estão ao nosso lado. E isso conta. E conta muito”; “Começa a haver demasiados portuguais dentro de Portugal”; “Os miúdos que não nasceram neste tipo de “família certa” têm direito aos mesmos sonhos que os filhos das elites portuguesas. Mas será que estamos a fazer alguma coisa para que isso se torne realidade? Será que podemos garantir que o talento conta mais do que a família em que cada um nasceu? Será que a igualdade de oportunidades existe?”; “Precisamos de ideias novas que nos dêem um horizonte de futuro”; “Aquilo que se pede aos políticos, sejam eles de esquerda ou de direita, é que nos dêem alguma coisa em que acreditar. Que ofereçam um objectivo claro à comunidade que lideram”.
Citei quer um quer outro dos dois autores e, como facilmente se pode verificar, há uma grande coincidência na narrativa por ambos apresentada. A receita para a popularidade de um discurso do 10 de Junho parece estar encontrada - descrição em tom pessimista do presente, a referência mais ou menos velada a uma crise no plano moral, a sempre apreciada crítica às elites (nuns casos numa vertente mais económico-social, noutros numa perspectiva mais cultural), o apelo final a uma solução quase meta-política que tenha o condão de milagrosamente unir os portugueses.
Nem um nem outro destes dois discursos se alcandorou ao plano de uma reflexão profunda sobre a presente realidade nacional nos seus múltiplos circunstancialismos de índole política, económica ou cultural. Destinaram-se a seduzir e não a problematizar. Ativeram-se a uma descrição excessivamente superficial sem ousar uma prospecção mais vasta das verdadeiras questões que se colocam no horizonte nacional. Escamotearam por completo o tema europeu que, nas suas diversas e por vezes inquietantes vicissitudes, integra hoje obrigatoriamente o núcleo de qualquer divagação conceptual sobre a nossa existência colectiva enquanto portugueses.
É verdade que da leitura dos dois discursos ressalta a diferente proveniência política e ideológica dos seus autores. Não é preciso sequer chegar ao fim do texto de Sampaio da Nóvoa, quando ele diz “25 anos depois não esqueço José Afonso: enquanto há força, cantai rapazes, dançai raparigas, seremos muitos, seremos alguém, cantai também. Cantemos todos. Por um país solidário”, para se perceber que estamos perante alguém que se situa claramente à esquerda. No caso de João Miguel Tavares perpassa, da primeira à última linha, um imaginário político totalmente identificado com os preceitos doutrinários de uma certa direita.
Apesar dessas diferenças o que os aproxima é uma certa representação monista do interesse nacional que facilmente se articula com uma denúncia perigosa do papel das elites, supostamente responsáveis pela não prevalência desse mesmo interesse nacional. Esta linha de orientação pode originar com facilidade o surgimento de um discurso geral de índole simplista e demagógico.
Sampaio da Nóvoa e João Miguel Tavares são duas personalidades respeitáveis e a escolha dos seus nomes para a função de oradores oficiais do 10 de Junho não me causou nenhuma perturbação. Por isso mesmo, na apreciação dos respectivos discursos cingi-me estritamente à análise dos seus conteúdos. Tenho hoje, aliás, uma excelente opinião de Sampaio da Nóvoa e sou um leitor de João Miguel Tavares.
Há uma coisa que me separa de muita gente que nos últimos dias tem escrito sobre este assunto: o discurso do 10 de Junho não pode nunca ser um discurso proferido em nome de uma espécie de senso comum e destinado a ser recebido exactamente nesse mesmo plano. Não, o discurso do 10 de Junho deve ser um discurso de excepção capaz de suscitar reflexão, debate e inquietação num plano que vá muito para além da superfície das coisas de todos os dias.