Acordo entre Estado e Berardo impede classificação da colecção de arte
Uma das cláusulas do protocolo de comodato assinado em 2006 e renovado dez anos depois estabelece que o Estado apenas pode pedir a classificação do acervo ou das obras que o compõem no caso de exercer o direito de opção de compra.
Uma cláusula do protocolo assinado entre o Estado e o coleccionador José Berardo impede qualquer classificação da Colecção Berardo, um acervo constituído por 862 obras de arte expostas no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, a menos que seja exercido o direito de opção de compra.
De acordo com o documento assinado em 2006 e consultado agora pela agência Lusa nos serviços do Ministério da Cultura, a cláusula 10.ª do acordo, que se mantém válida após a renovação de 2016, determina igualmente que o Estado não poderá impedir a colecção de sair do país após a cessação do acordo de comodato que vigora até 2022. Como contrapartida pelo comodato gratuito, válido por um período de dez anos (entretanto renovados por mais seis), à Fundação [de Arte Moderna e Contemporânea – Colecção Berardo], e pelo direito de opção de compra que lhe foi então atribuído, o Estado comprometeu-se a “não classificar, ao abrigo da actual e/ou futura legislação nacional, e/ou comunitária de protecção do património cultural, a Colecção Berardo, e/ou qualquer das peças que a integre”.
Segundo esta cláusula, que não sofreu alterações com a adenda ao acordo, ficam abrangidas a “classificação de tesouro nacional, de interesse público ou outras denominações legais futuras”.
A outra contrapartida exigida por Berardo determina que o Estado se compromete a “não colocar entraves à saída de Portugal e/ou do espaço comunitário, ao abrigo da actual ou futura legislação de protecção de património cultural, caso venha a cessar o comodato” entre ambos.
Tal significa que, caso o acordo entre as partes termine, José Berardo poderá dispor da sua colecção de arte como entender e fazê-la sair de Portugal ou da Europa, sem que o Estado o possa impedir. Recorde-se que no Verão do ano passado o empresário endereçou à Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) um pedido de expedição de “16 quadros” para o Reino Unido, “para eventual venda". O parecer daquele organismo, assinado pela directora-geral, Paula Silva, indeferiu o pedido, lembrando que as obras em causa “são parte integrante do conjunto designado por Colecção Berardo que aquela associação se obrigou a manter em comodato” no Museu Colecção Berardo “pelo período de seis anos, renováveis automaticamente, a contar de 1 de Janeiro de 2017”.
“A Associação Colecção Berardo, enquanto vigorar o comodato, não pode dispor dos bens culturais objecto do pedido de expedição”, concluía, em Agosto do ano passado, o parecer da DGPC que inviabilizou a saída do país de obras tão significativas como Abstract Painting (1987), de Gerhard Richter, Tableau (amarelo, preto, azul, vermelho e cinzento), de Piet Mondrian; Oedipus and the Sphinx after Ingres (1983), de Francis Bacon, Paysage aux Arbustes (1949), de Jean Dubuffet, Pater (1982), de Jean-Michel Basquiat, Picture Emphasizing Stillness(1962), de David Hockney, Balance (1919-20), de Francis Picabia, Figure à la Bougie (1925), de Joan Miró, Elena's Schuhe (1986-88), de Sigmar Polke, Lucky Seven (1962), de Joan Mitchell, e Sabro (1956), de Franz Kline.
A 10.ª cláusula estabelece ainda que “caso o Estado ou outra entidade pública, tutelada pelo Governo, venha a desencadear um processo que ponha em causa os compromissos desta cláusula, fica obrigado a adquirir a Colecção Berardo pelo valor igual ao preço da data em que o faça”.
O acordo firmado entre as partes possui ainda uma 13.ª cláusula, que estabelece os casos de incumprimento em que o Estado é obrigado à “restituição imediata” da coleção, nomeadamente, a alteração dos estatutos da Fundação, a utilização abusiva das obras, a não-abertura do museu, a conservação inadequada, e atrasos nos apoios financeiros.
A Associação Colecção Berardo, presidida por José Berardo, é indicada no acordo como “a dona e legítima possuidora das obras”, que a CGD, o BCP e o Novo Banco querem penhorar através dos títulos de participação que o empresário deu como garantia para obter créditos que actualmente atingem quase mil milhões de euros.
Avaliado em 2006 pela leiloeira Christie’s em 316 milhões de euros, o conjunto de obras hoje instalado no Museu Berardo foi reunido maioritariamente (594 peças) entre o começo da década de 1990 e 2000, ano em que o gestor Francisco Capelo, também ele coleccionador, se desvinculou da Associação Colecção Berardo, de que era um dos instituidores. Nos últimos 13 anos, a colecção não voltou a ser avaliada oficialmente, embora o então secretário de Estado da Cultura Francisco José Viegas tivesse tentado, em 2011, que a Sotheby’s a apreciasse para aferir da razoabilidade do valor que lhe fora atribuído originalmente. A leiloeira recusou-se no entanto a cumprir a tarefa enquanto o Governo e o empresário não chegassem a um acordo em relação à necessidade de reavaliar o acervo. Berardo conseguira, entretanto, travar a avaliação pedida pelo secretário de Estado com uma providência cautelar que se baseava no facto de esse mesmo acordo de comodato estipular que o valor de 316 milhões de euros não teria de ser “sujeito a qualquer tipo de revisão” no caso de o Estado decidir comprar a colecção.
A polémica em torno da colecção, que inclui obras raras de Jean Dubuffet, Joan Miró, Yves Klein e Piet Mondrian, ressurgiu em Maio deste ano, quando Berardo foi questionado no parlamento sobre as suas dívidas e argumentou que os bancos não poderiam aceder à colecção.
Sobre a possibilidade de as obras saírem do CCB, a ministra da Cultura, Graça Fonseca, veio dizer, na altura, que o Governo “usará as necessárias medidas legais” para garantir que a colecção continuará inteira e acessível à fruição pública.
A adenda ao acordo, negociada e assinada em 2016, determinou o seu prolongamento por mais seis anos, com a possibilidade de ser renovada automaticamente a partir de 2022, se não for denunciado nos seis meses antes do fim do protocolo.
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