Alterações climáticas e economia baralham as “eleições imperdíveis” na Austrália
Líder do Partido Trabalhista demite-se após derrota inesperada nas legislativas. Coligação de centro-direita diz que a vitória foi dos “australianos silenciosos”, que se assustaram com a ideia de um aumento dos gastos públicos.
Os eleitores do Partido Trabalhista da Austrália já tiveram oportunidade para dormir uma noite desde a derrota nas eleições legislativas de sábado, mas ainda não perceberam o que aconteceu àquela “votação imperdível” que as sondagens lhes prometeram. Para o grande vencedor, o renascido primeiro-ministro Scott Morrison com a sua coligação de liberais e conservadores, a explicação é simples: “Eu sempre acreditei em milagres.”
A contagem ainda não tinha terminado no domingo à noite (hora local), mas o líder dos trabalhistas, Bill Shorten, foi rápido a reconhecer a derrota e só faltava saber se Morrison vai governar com maioria ou se precisará do apoio de um ou dois deputados independentes.
Os jornais mais cautelosos, como o Guardian e o Sydney Morning Herald, davam 72 e 73 deputados à coligação de centro-direita, mas o The Australian e o Daily Telegraph punham o primeiro-ministro mesmo à porta da maioria, com 74 e 75 deputados – a um ou dois dos 76 necessários, quando já se sabe que a independente Zali Steggall e Bob Katter, líder de um partido com o seu próprio nome, prometeram dar a mão aos liberais e conservadores.
Tão espantado como qualquer outro eleitor australiano, Scott Morrison só tinha uma explicação: “Foi um milagre. Eu sempre acreditei em milagres.” E este milagre, em particular, foi obra dos “australianos silenciosos”.
“Eles têm o sonho de arranjar um emprego ou um estágio, de criar o seu negócio, de encontrar alguém maravilhoso e começar uma família, de trabalhar muito e dar o melhor possível aos filhos, de poupar para a reforma. Os australianos silenciosos tiveram uma grande vitória. Este resultado é de cada australiano que depende do seu governo para os pôr em primeiro lugar”, disse Morrison aos seus apoiantes em Sydney.
Um dos primeiros líderes mundiais a felicitar Morrison foi o Presidente dos EUA, Donald Trump, no Twitter: “Parabéns ao Scott por uma grande vitória!”
Impostos e clima
Nenhuma outra eleição foi tão surpreendente como as legislativas australianas de sábado, desde aqueles cinco meses de 2016, entre Junho e Novembro, em que o referendo sobre o “Brexit" e a vitória do Presidente Donald Trump deixaram meio mundo a coçar a cabeça.
Tal como no Reino Unido e nos EUA, também na Austrália as sondagens eram claras. Durante meses, todas elas, sem uma única excepção, deram a vitória ao Partido Trabalhista e às suas propostas ambiciosas de corte das emissões poluentes e de reforço do apoio aos mais desfavorecidos.
Para trás, segundo as mesmas sondagens, ficariam seis anos de governação mais à direita, da histórica coligação entre o Partido Liberal e o Partido Nacional, com uma visão muito diferente para o futuro do país e assente num programa de corte dos impostos e mais amiga dos postos de trabalhos das indústrias poluentes.
Mas não foi nada disso que aconteceu – a Coligação garantiu um terceiro mandato consecutivo, o primeiro-ministro calou as divisões internas no seu partido e os analistas políticos foram apanhados de surpresa mais uma vez, tal como aconteceu no Reino Unido e nos EUA há três anos.
“Nesses países, o trauma nacional foi a descoberta de que uma parte do país estava muito mal familiarizada com a outra. Os cidadãos deixaram de se conhecer uns aos outros”, diz a jornalista Brigid Delaney na edição australiana do jornal Guardian. “As sondagens falharam, os media falharam, e as pessoas estavam tão isoladas nas suas próprias tribos e em bolhas nas redes sociais que a vitória do outro lado foi recebida com um choque profundo. Como se isso não pudesse acontecer.”
E pensava-se que isso não poderia acontecer na Austrália, um país onde a confusão política da última década, que já viu cinco primeiros-ministros, parecia equilibrar-se com quase 30 anos de uma economia saudável e com as poucas diferenças de fundo entre as duas forças que repartem o Governo, ora o Partido Liberal, ora o Partido Trabalhista.
“Bill Shorten começou a campanha eleitoral com a confiança de que a sua cruzada a favor da equidade acabaria por conquistar os eleitores australianos, mas foi surpreendido pela atracção por uma mensagem mais conservadora”, diz o principal comentador de política no jornal Sydney Morning Herald, David Crowe. “Esta rejeição brutal obriga o Partido Trabalhista a ponderar se leu mal o eleitorado ou se prejudicou a sua campanha ao prometer redistribuir a riqueza com um programa político progressista.”
Poucas horas depois da divulgação dos resultados, os trabalhistas davam início a uma longa autópsia do drama eleitoral de sábado. Shorten anunciou que vai deixar a liderança, para que outros possam agora “limpar a poeira, repensar e reorganizar” o partido com vista às eleições de 2022.
O fim de Abbott
Há alguns sinais de que a surpreendente vitória dos liberais e conservadores na Austrália tem pontos de contacto com a surpreendente vitória de Donald Trump nos EUA. Ainda que o Partido Trabalhista tenha sofrido uma pesada derrota a nível nacional, perdendo ainda mais terreno fora das cidades, também é verdade que ganhou votos aos conservadores em algumas áreas urbanas mais ricas.
E se a promessa de reforço do combate às alterações climáticas pode ter contribuído para sabotar a “votação imperdível” dos trabalhistas a nível nacional, o resultado em Warringah, no estado de Nova Gales do Sul, deixa perguntas mais difíceis, como a que foi feita no Guardian por Brigid Delaney: “Estaremos condenados? Seremos nós como aqueles países em que uma metade odeia a outra metade?”
É que em Warringah, o antigo primeiro-ministro Tony Abbott, acusado pelos críticos de negar a influência humana nas alterações climáticas, perdeu o cargo de deputado ao fim de 25 anos. A sua opositora, a independente Zali Steggal, representa o oposto, e na hora da vitória deixou isso claro: “Esta noite, Warringah votou pelo futuro. Temos um novo começo para o nosso ambiente.” (Steggal opõe-se à política ambiental dos conservadores, mas admitiu viabilizar um governo do primeiro-ministro Morrison por discordar ainda mais da política fiscal dos trabalhistas.)
Enquanto isso, do outro lado, Abbot tentou justificar a sua derrota com a ideia de que as alterações climáticas só preocupam quem não tem problemas na carteira: “Onde as alterações climáticas são um problema moral, nós os liberais temos dificuldades; onde as alterações climáticas são um problema económico, como mostra a votação [nacional] desta noite, os nossos resultados são muito bons.”