Director do MNAA diz que o museu é vítima do “abandono do Estado”
António Pimentel, actual director do Museu Nacional de Arte Antiga, abandona o cargo em Junho ao fim de nove anos. Em entrevista ao El País, acusa o Governo de ignorar o espaço e diz que não tem contacto com a tutela desde a demissão de João Soares.
A pouco mais de um mês de abandonar oficialmente a direcção do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, António Pimentel lamenta novamente, mas desta vez em entrevista ao diário espanhol El País, que o Estado português tenha abandonado “o primeiro museu de Portugal”.
Depois de nove anos à frente do MNAA, o director de 58 anos diz-se cansado da burocracia e do desprezo que acusa o Governo português de demonstrar em relação ao museu. Não poupa nos exemplos: há meses que o espaço está sem luz nas escadas e com o computador da loja avariado, porque é necessário esperar que um funcionário do órgão público competente venha reparar o equipamento.
Para o historiador de arte, que abandona a direcção do MNAA em Junho — assim como o seu director-adjunto, José Alberto Seabra Carvalho —, “há um abandono técnico do Estado, que não assume o museu como um projecto próprio”, começa por dizer António Pimentel em entrevista ao El País publicada este domingo.
Questionado sobre o facto de ter alertado, em 2018, aquando da destruição do Museu Nacional do Rio de Janeiro por um incêndio, para os perigos que o MNAA também corria, o ainda director explica que, apesar de o museu estar protegido dos incêndios, “mantém-se um desinvestimento na instituição, em recursos humanos, condições financeiras e administrativas”. O que, no sentido metafórico e literal, poderá levar o MNAA “ao ponto de as luzes se apagarem”.
“Vai ser muito difícil chegar ao final deste mês com dignidade”
Ao longo de nove anos de mandato, António Pimentel conheceu sete ministros. Desses, “apenas o João Soares [do Partido Socialista] teve verdadeira consciência da importância do museu”. “Trabalhamos juntos e ele arranjou-nos patrocinadores, mas demitiu-se passado quatro meses”, explicou o director do MNAA, referindo-se à demissão do então ministro da Cultura depois de ter escrito no Facebook que estava a dever “duas bofetadas salutares” aos cronistas do PÚBLICO Augusto M. Seabra e Vasco Pulido Valente.
“Passaram-se três anos desde então e não voltei a ter contacto directo com os ministros que lhe sucederam”, acrescenta.
Questionado sobre a razão pela qual abandona o cargo em Junho, António Pimentel culpa a falta de resposta por parte do Estado português: “Fui contratado para defender e promover o prestígio do MNAA. Desde 2014 que tenho alertado para os problemas crónicos do museu e não obtive resposta”. “Há uma clara desinibição da Administração Pública, mais evidente com a actual ministra [Graça Fonseca] e há uma divergência filosófica entre a direcção do museu e o ministério, portanto, não há razão para continuar”, prossegue o director. “Vai ser muito difícil chegar ao final deste mês com dignidade”, afirma, referindo ainda o facto de as direcções dos departamentos de edição e comunicação terem também abandonado os cargos.
O desinvestimento no museu, diz, é também notório na quantidade de funcionários com que pôde contar ao longo do seu mandato. “Do director ao jardineiro”, António Pimentel contou com 67 funcionários, “um número que deveria ser apenas o do departamento de conservação e restauração”. “Há trinta anos, havia 167 funcionários para um espaço mais pequeno e com menos visitas”, revela o actual director. Ainda assim, explica, se antes “viajavam para o exterior uma ou duas obras”, em 2017 foram 154 as obras que partiram do MNAA para exposições em todo o mundo. “A circulação internacional é uma forma de reconhecimento e de demonstrar aos portugueses que o seu MNAA tem prestígio”, constata.
"Hoje os taxistas sabem onde fica"
Quando assumiu o cargo de director, Pimentel diz ter-se deparado com “uma instituição que tinha tudo contra ela”. Mas foi “graças à sua própria força e energia criativa” que o museu se reinventou e se transformou numa “estrutura luminosa”. As transformações, diz, foram transversais “à investigação, à programação e à própria estrutura física”. Um museu renovado “a 80%”.
“Transformamos o museu numa grande instituição internacional, apesar do facto de o país se ter esquecido da sua relevância”, sublinha António Pimentel. E é precisamente o que deixa como legado: “uma luz sobre a instituição”, que se encontra agora sob os holofotes do universo da arte em Portugal, e a sua internacionalização. “É uma referência em Portugal e antes não o era. Hoje os taxistas sabem onde fica [o museu], não é preciso dar-lhes o endereço. E em segundo lugar, um nome com marca internacional”, nota.
O director, ainda em funções, destaca ainda a união de esforços por parte da sociedade civil portuguesa para ajudar o museu. Exemplo disso foi a campanha de angariação de fundos, em 2016, para adquirir a obra Adoração dos Magos (1828), de Domingos Sequeira. “Conseguimos os 600.000 euros necessários e que o mundo descobrisse este pintor português. Foi uma prova do que o museu poderia fazer por Portugal se tivesse o orçamento mínimo”, recorda.
"O museu é uma ficção"
E quanto ao orçamento de que o museu dispõe, António Pimentel adianta que “os lucros das entradas vão para o ministério”, assim como os da loja do museu. “O museu não existe. Existe como entidade moral e jurídica. É uma entidade administrativa. As exposições, os programas e todas as iniciativas são graças ao Grupo dos Amigos do museu, que permitem que o dinheiro que angariam chegue ao MNAA (…) É assim que conseguimos comprar as lâmpadas das salas quando estas fundem. Se esperássemos que a Administração comprasse as luzes adequadas para as obras, as 80 salas estariam às escuras. O museu é uma ficção, uma invenção desta direcção, pois faz exposições com meios que não são públicos”, afirma o director.
Relembrando a luta pela autonomia dos museus e monumentos (um dos pontos pelo qual se bate há vários anos e que Graça Fonseca garantiu estar já previsto no novo decreto-lei), Pimentel recorda que ao museu não está atribuído um NIF nem uma conta bancária. “Em 2015, pedimos ao ministério para nos deixar ficar com o lucro dos bilhetes e da loja”, receitas que rondarão os 500 mil euros. “Estamos a falar de meio milhão de euros, uma quantia ridícula em termos internacionais”, diz o director, acrescentando que o pedido foi negado.
Os problemas relatados não ficam por aqui. Além do computador avariado, “há meses que não há luz na escada dos funcionários”, o que faz com que tenham de subir a escadaria recorrendo à lanterna dos telemóveis. “Também não podemos contratar vigilantes. Nem sequer somos proprietários das fotografias das obras que exibimos. Só podemos usar cinco ou seis por exposição para ceder aos meios de comunicação. Se quisermos mais, temos que as comprar ao ministério”, revela.
Recorrendo a dados de “uma consultora”, António Pimentel diz que os visitantes do museu "aumentariam para 800 mil” e que poderia mesmo “chegar a um milhão”, com lucros a quadruplicar, caso o MNAA conquistasse autonomia.
Em 2010, o MNAA fechou o ano com 118 mil visitantes. De acordo com a DGPC, em 2017 foram quase 213 mil os que acorreram ao museu da Rua das Janelas Verdes.