45 anos na história de um país
Tomar a nuvem por Juno, querendo fazer-nos acreditar que as (muitas) falhas no funcionamento do sistema político-partidário são sinal de falência da democracia é grave e perigoso.
Assustou-me uma certa desvalorização do mérito da revolução de Abril, que constatei em alguns (ainda que poucos) artigos de opinião, trazidos a público neste ano em que se comemoram 45 anos sobre a data que, de facto, gerou um Portugal novo.
Tendo eu nascido em 1969, a verdade é que pouco, ou quase nada, recordo dos tempos de uma ditadura, suavizada já, à época, pela brisa de uma pretensa primavera marcelista.
Além disso, e se me ativer à minha circunstância pessoal e ao meu contexto familiar de classe média urbana (com todos os atributos de que o conceito de classe média normalmente se reveste), os impactos da mudança poderão até ter sido, no que a mim diz respeito, algo reduzidos.
Todavia, não são as minhas circunstâncias, nem tão-pouco o meu contexto sociocultural e económico que aqui estão em causa.
O que está em causa, o que deve estar em causa, sempre, é a sociedade no seu todo e, para esse todo social, as mudanças e as melhorias foram profundas (mostram-no-lo os números e mostram-no-lo as vidas) sendo, no mínimo, preocupante que se tente agora menorizá-las e desvalorizá-las, nomeadamente, confundindo planos e questões, em retóricas demagógicas e ocas que, paradoxalmente, só logram ver a luz do dia por causa de uma das principais conquistas de 1974: a liberdade de expressão, de opinião e de pensamento.
É que para a sociedade portuguesa essas mudanças profundas significaram desenvolvimento social, cultural e económico: um desenvolvimento que se traduziu na redução do analfabetismo e da ignorância, da insalubridade e da mortalidade infantil, da pequenez e da fome, da servidão e do medo, para a maioria da população portuguesa.
E é fundamental que não se perca esta memória, nessa típica manifestação de novo-riquismo em que, perante o deslumbramento com o desafogo de hoje, se varre para debaixo do tapete o pó da miséria de ontem.
Se poderíamos ter alcançado mais? Sem dúvida que sim. Poderíamos ter alcançado mesmo muito mais, se a fiscalidade fosse mais justa e eficaz, ou se a corrupção fosse menor, ou se a educação nos preparasse para sermos mais exigentes e participativos. Poderíamos, sim, ter alcançado muito mais!
E poderemos alcançar muito mais e deveremos almejar a alcançar muito mais, mas isso não nos permite negar, ou escamotear, aquilo que lográmos enquanto povo, enquanto sociedade e enquanto nação.
Tomar a nuvem por Juno, querendo fazer-nos acreditar que as (muitas) falhas no funcionamento do sistema político-partidário são sinal de falência da democracia é grave e perigoso.
É grave porque confunde fenómenos de corrupção, compadrio ou, simplesmente, inépcia (e note-se que nenhum destes deve ser tolerado) com totalitarismo de Estado (o que só pode resultar de má-fé ou de absoluta ignorância histórica).
E é perigoso, porque alimenta clivagens maniqueístas, na maioria das vezes fundadas em interesses obscuros, que segregam e dividem e, por isso, nos coartam no nosso direito ao desenvolvimento, ao bem-estar e à liberdade e nos tornam reféns, aí sim, dos mais perigosos extremismos.